Bessie

Bessie

Esta mulher canta sua feridas com a voz da glória e ninguém pode ficar surdo ou distraído.

Pulmões da noite profunda: Bessie Smith, imensamente gorda, imensamente negra, amaldiçoa os ladros da Criação.

Seus blues são os hinos religiosos das pobres negras bêbadas dos subúrbios: anunciam que serão destronados os brancos e os machos e os ricos que humilham o mundo.

 

Eduardo Galeano
Mulheres, LPM Pocket, Porto Alegre, 1997

(Bessie Smith é uma grande cantora negra americana, uma das “rainhas” do blues).

Cinco Mulheres

Cinco Mulheres

— O inimigo principal qual é? A ditadura militar? A burguesia boliviana? O Imperialismo? Não, companheiros. Eu quero dizer só isso: nosso inimigo principal é o medo. Temos medo por dentro.

Só isso disse Domitila na mina de estanho de Catavo e então veio para La Paz, a capital da Bolívia, com outras quatro mulheres e uma vintena de filhos. No Natal começaram a greve de fome. Ninguém acreditou nelas. Vários acharam que esta piada era boa:

— Quer dizer que cinco mulheres vão derrubar a ditadura?

O sacerdote Luis Espinal é o primeiro a se somar. Num minuto já são mil e quinhentos os que passam fome na Bolívia inteira, de propósito. As cinco mulheres, acostumadas à fome desde que nasceram, chamam a água de franco ou peru, de costeleta o sal, e o riso as alimenta. Multiplicam-se enquanto isso os grevistas de fome, três mil, dez mil, até que são incontáveis os bolivianos que deixam de comer e deixam de trabalhar e vinte e três dias depois do começo da greve de fome o povo se rebela e invade as ruas e já não há como parar isso.

Em 1978, as cinco mulheres derrubam a ditadura militar.

 

Eduardo Galeano
Mulheres, LPM Pocket, Porto Alegre, 1997

Que eu me torne…

Que eu me torne em todos os momentos, agora e sempre,
um protetor para os desprotegidos,
um guia para os que perderam o rumo,
um navio para os que têm o oceano a cursar,
uma ponte para os que têm rios a atravessar,
um santuário para os que estão em perigo,
uma lâmpada para os que não tem luz,
um refúgio para os que não tem abrigo,
um servidor para todos os necessitados.

 

Anônimo tibetano

Meu Povo, Meu Poema

Meu povo, meu poema

“Meu povo e meu poema crescem juntos
como cresce no fruto
a árvore nova

No povo meu poema vai nascendo
como no canavial
nasce verde o açúcar.

No povo meu poema está maduro
como o sol
na garganta do futuro.

Meu povo em meu poema
se reflete
como a espiga se funde em terra fértil.

Ao povo seu poema aqui devolvo
menos como quem canta
do que planta”.

 

Ferreira Gullar

Canção Amiga

Canção Amiga

Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
tôdas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.

Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não me vêem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.

Eu distribuo um segredo
como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural
dois carinhos se procuram.

Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.

Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.

 

Carlos Drummond de Andrade

Das Utopias

Das Utopias

Se as coisas são inatingíveis… ora!

Não é motivo para não querê-las…

Que tristes os caminhos, se não fora

A mágica presença das estrelas!

 

Mário Quintana

A Fome

A FOME

“Uma velha que trazia a fome nos
ombros e nos olhos e que trazia
a seca no ventre e no seio.”
J. Cardozo.

Se fome tem nome,
o nome da fome,
é nordeste.

Corações áridos,
destinos inválidos,
cáusticos destinos,
criados ao sol a pino.
O sertão e agreste definham, agonizam.

Se fome tem nome,
o nome perene é nordeste.
Fome consome, sem pressa,
com preces, fome entristece.
O nome da fome: nordeste.

Norte, sul, leste, oeste,
cardeais da sorte,
pontos na vida ou morte,
chegam à Bangladesh,
São Paulo, Rio ou Marrakesh.

Será o nome da fome,
só e só nordeste?
E a negritude do Harlen,
utopia de Moscou ou Budapeste?
E os sopros do liberto Timor Leste?

Espremendo mais do que o infinito, choveu.
No chão aflito, um ressequido sertão sobreviveu.
Gotas de suor e sangue,
poucas gotas d’água,
quase tudo se perdeu.

Há esperança e utopia,
brincando na etérea alegria,
apesar do pão difícil de cada dia.

O trigo pede perdão.
Tropeça na mão das secas,
na ausência do pão,
milagre concreto do grão.
Mais um cabra da peste,
segura firme
toda esperança na mão.

 

J.A

Mãos dadas

Mãos Dadas

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente.

 

Carlos Drummond de Andrade

Violência: pare e pense!

Violência: pare e pense!

Quando demitiram os negros,
eu não era negro e não fiz nada.

Quando demitiram os adoecidos e acidentados do trabalho

eu não era adoecido do trabalho e porque iria defende-los?

Quando demitiram as mulheres,
eu não era mulher. Ia fazer o que?

Quando demitiram os mais velhos,
eu não era velho e nada fiz nada.

Quando vieram contra meus colegas de trabalho,

o assunto não me dizia respeito e nada fiz. Calado fiquei.

Finalmente, quando vieram contra mim…
Ninguém me defendeu!

Aquele que nunca sofreu qualquer tipo de violência
sempre pensará que o sofrimento do outro
não é grande coisa, que é exagero.

Alguns até acham que a violência moral, as discriminações e o racismo não existem!
Que não existe discriminação contra os negros, contra as mulheres, os doentes, os acidentados do trabalho, os desempregados, os favelados, os sem teto, os sem terra…

E assim seguimos e fazemos todos os dias:
desprezamos ou diminuímos
o sofrimento alheio.

Não dando atenção à dor do outro nos condenamos a sofrer em silêncio

a nossa própria dor.
O nosso silêncio
favorece os opressores e nos faz cúmplice.
Quem, por medo, se cala,
De alguma forma, concorda com o tirano.
E tudo parece muito normal,

tão normal quanto sofrido e solitário. E as injustiças são banalizadas.

Quem sabe, aquelas frases ditas anteriormente poderiam ser reescritas assim?

Quando vieram contra os negros,
eu nada fiz.
Pois em meu silencio, eu também era contra os negros.
Quando vieram contra os adoecidos e acidentados do trabalho

eu não era adoecido e fiquei em silencio.
Na verdade, eu era contra aqueles que adoeciam, pois eu achava que eles fingiam.
Quando vieram contra as mulheres,
eu não era mulher e permaneci em silencio. Eu era contra as mulheres.
Quando vieram contra os desempregados,
eu não era desempregado e não fiz nada e,

calado, também eu era contra os desempregados.

Quando vieram contra os analfabetos, os favelados, os sem teto e os sem terra, não fiz nada e, em silencio, também eu era contra os favelados, os sem teto e sem terra.

Quando vieram contra mim, ninguém me defendeu, usaram o silêncio e a indiferença para apoiar meus inimigos.

Talvez uma lição a ser aprendida:
o que nos faz iguais é que somos, todos,
diferentes uns dos outros.

Então, reflitam: de onde vem esse medo de ser diferente?
Por que permanecemos em silêncio? Porque nos submetemos? Porque nos calamos ante as injustiças?
Por que aceitamos os desmandos e abuso de poder?
Por que nos resignamos a viver fechados e solitários e tratamos o outro com frieza e indiferença?
Por que ignoramos a positividade da sociabilidade?
Porque abrimos mão de nossa liberdade e nos sujeitamos ao tirano?

Por que nos identificamos e até acreditamos nas tagarelices televisivas?

Por que tanto medo?
Por que? por que?
Pensem nisso.

(Inspirado no filme: “Olhos azuis” de Jane Elliott)

 

M. Barreto