Margarida Maria Silveira Barreto está entre os especialistas da área médica precursores no estudo sobre assédio moral no trabalho e efeitos das jornadas extensas sobre a saúde de trabalhadores. Suas pesquisas jogaram luz sobre a realidade vivida tanto por executivos quanto por operários em rotinas de desgaste físico e emocional, sob o abuso de poder por parte de empregadores, situações relatadas no livro Violência, saúde e trabalho – uma jornada de humilhações (Educ/Fapesp). Escrito a partir da retórica discursiva de trabalhadores sobre saúde, doença e trabalho, a obra instiga reflexões sobre a “inclusão pela exclusão”. Segundo Margarida Barreto, a organização do trabalho, as políticas de gestão e as extensas jornadas de trabalho – que atingem todas as profissões no país – favorecem condutas assediadoras e abuso de poder que desencadeiam o adoecimento de trabalhadores, a fragmentação e o esvaziamento de sentido do trabalho, a violação da dignidade e a flexibilização de direitos. “As jornadas extenuantes e a pressão por metas revelam a arqueologia do adoecer, isto é, uma condição em que o ser humano não é considerado e que traz prejuízos para todos, inclusive para as empresas e a Previdência”, alerta a médica nesta entrevista.
Extra Classe – Ao alertar sobre as consequências das jornadas de trabalho excessivas e da pressão por produtividade, a senhora refere-se à arqueologia do adoecer. Quais são os danos causados aos trabalhadores por essa lógica do sistema produtivo ? Margarida Barreto– A exigência de jornadas extenuantes e pressão contínua por maior produção é o que revela a arqueologia do adoecer. É uma condição em que o ser humano desaparece, dando lugar ao ser-máquina, que não pode enfermar, não pode faltar à empresa, que deve, a cada segundo, superar as metas. Também poderíamos afirmar que, no período histórico atual, a grande arte no mundo do trabalho está centrada na fragmentação do trabalhador, na constante violação da dignidade e na flexibilização dos direitos, na precarização das condições de trabalho, desestruturação das formas de sociabilidade e abuso de poder. EC – A violação do direito ao descanso interfere na saúde e na vida familiar dos trabalhadores ? Margarida – O trabalho mudou e mudaram as técnicas e, mesmo sem fazer um diagnóstico primoroso da essência do meio ambiente do trabalho e das relações laborais, não se pode deixar de mencionar o culto à banalização do sofrimento e naturalização das exigências que se expressam nas humilhações e desqualificações cotidianas. Essas passaram a fazer parte de um modo singular de administrar e organizar o trabalho, potencializando o que chamávamos de novo modo taylorista de administrar. Hoje, o tempo de trabalho está intensificado, não há espaços para que o trabalhador possa descansar das múltiplas tarefas que realiza. Essa gestão desumana com intensificação do ritmo de trabalho causa sérias consequências para os trabalhadores e trabalhadoras, atingindo a sua família e interferindo nas formas de adoecer e morrer. EC – Afetam também a produtividade das empresas ? De que forma ? Margarida – Sim, a política da onipotência e onipresença da produtividade é o “tudo” das empresas. O que mais elas desejam é aumentar a sua produção e, consequentemente, seus lucros. Para isso, lutam para aumentar a visibilidade no mercado com uma imagem de responsabilidade social, de boas práticas e defesa do verde. Esse é o discurso que não corresponde à prática no intramuros. É na linha do tempo de cada organização que aparecem os traços típicos daquilo que são : demitem aos primeiros sinais de adoecimento, retardam ao máximo o retorno ao trabalho daqueles que estiveram afastados por doença e retornaram após receber alta da Previdência. Omitem doenças e acidentes e não admitem, mesmo que de forma velada, mulheres que engravidam no primeiro ano de empresa. Censuram cipeiros e dirigentes sindicais, dificultando ou impedindo suas atividades. Tentam impor aos dirigentes a necessidade de priorizar o “sentar à mesa e negociar”, cooptando-os como colaboradores do capital, tentando neutralizar conflitos e divergências entre as classes. EC – Uma lógica que inclui a pacificação e a juvenilização nas empresas… Margarida– Quando fazem as reestruturações, essas empresas demitem os mais velhos e os que recebem altos salários ou até mesmo aqueles que criticam as jornadas exaustivas e as exigências sem limites. É o momento da “limpeza” daqueles que “falam muito” e instauração de um novo entendimento e aceitação da organização. Vivemos uma época em que o grande trabalhador é aquele que sempre excede e ultrapassa as metas impostas e que não adoece. São os novos guerreiros da produção. E, por isso, há a exaltação do discurso fálico para aqueles que ultrapassam as metas e não faltam. O trabalhador sadio é exaltado, é um “macho bravo”, que não adoece, que não questiona e se ajusta às normas. Em contrapartida, há uma estratégia de eliminar os adoecidos, os questionadores, os que cobram a patologia do banco de horas e criticam a participação parcial nos lucros. Não é exagero dizermos que o ambiente de trabalho que todos vivem é de um constante culto à produção e imperativo do lucro máximo. Todos estão submetidos ao culto da competitividade, das práticas individualizadas e egoístas, o que não deixa tempo para tecer laços de amizade e muito menos ajuda mútua, no grupo social. Não há entusiasmo, confiança, respeito mútuo, reconhecimento no grupo, pois todos devem vigiar o trabalho do outro, encarar um ao outro como um potencial inimigo. São fatores que favorecem o adoecer, dão lugar ao desânimo no coletivo, à fadiga e a transtornos, ao aumento de acidentes e diminuição da produtividade. EC – O adoecimento devido à jornada estendida tem reflexos na Previdência ? Margarida – Sim. A empresa é responsável pelo pagamento dos primeiros 15 dias de afastamento do trabalhador. A partir do 16º, é a Previdência. Se você me perguntar qual a fotografia que temos do mundo do trabalho em pleno século 21, te falaria dos números oficiais. Eles nos revelam que entre 2008 e 2010 houve o registro de 2,3 milhões de acidentes do trabalho, com a morte de 8.089 trabalhadores, isto é, quase uma morte por acidente de trabalho a cada 3 horas. Desse total, 41.798 trabalhadores ficaram permanentemente incapacitados para o trabalho. Imagine uma pessoa que sofreu um acidente, que adoeceu em consequência do trabalho, que desencadeou um transtorno mental ou fadiga intensa, de tanto trabalhar. Não dá para você prever quantos dias esse trabalhador vai necessitar permanecer afastado de suas atividades, quando terá condições para retornar ao trabalho. O custo é muito alto. E se o retorno culmina com a demissão, por exemplo, essa pessoa poderá, após alguns meses de desemprego, desenvolver outras doenças como hipertensão, depressão e até mesmo ideações suicidas. EC – O aumento do número de postos de trabalho formais e do rendimento real representam avanços na direção do pleno emprego ? A qualidade dessas vagas está em discussão ? Margarida – É necessário termos um pouco de cuidado ao falarmos em pleno emprego. Deveríamos refletir e perguntar que tipo de emprego ? Precarizados ? Terceirizados ? Subempregos ? Temporários ? Trabalho informal ou em tempo parcial ? De empregos que exigem pouca qualificação, o que justifica pagar menos e explorar mais ? Do emprego que valoriza as coisas e desvaloriza os homens ? Da disseminação do trabalho que adoece e mata ? São modalidades que provocam insegurança tanto na manutenção do emprego como na renda, que é sempre menos ante um trabalho que exige muito e, ainda por cima, é pouco valorizado socialmente. Vivemos transformações intensas e profundas no mundo do trabalho, cuja marcas são as reestruturações e flexibilizações do processo produtivo ao lado de intensas desregulamentações, precarização social e do trabalho que se juntam às demissões massivas. Quem fica, fica sobrecarregado, tendo que enfrentar e internalizar o discurso no qual o futuro da empresa é o seu futuro, o seu sucesso. EC – Ou seja, o custo do pleno emprego é alto e quem paga são os trabalhadores… Margarida – Sim, pois trabalhar em condições precarizadas, sobrecarregados de tarefas, coisificados, alienados do seu próprio sofrimento, por não se reconhecerem no trabalho que realizam não pode ser motivo de prazer e saúde. Ao contrário, na medida em que acentua a falta de sentido do trabalho, que favorece o “despertencimento social” ou a exclusão cada vez maior dos trabalhadores formais. São dimensões que favorecem o aparecimento dos “déspotas de si mesmos” ante um clima de exacerbação da banalização das injustiças. Não vamos esquecer que há degradação da condição salarial, há jovens sem trabalho, há diminuição de oferta de trabalho para os que ultrapassaram os 50 anos de idade e, contraditoriamente, com alto nível de escolaridade e qualificação profissional. O novo, hoje, é que se demite com uma facilidade espantosa, independentemente de colocar-se contra a legislação ainda vigente. “…entre 2008 e 2010 houve o registro de 2,3 milhões de acidentes do trabalho, com a morte de 8.089 trabalhadores, isto é, quase uma morte por acidente de trabalho a cada 3 horas. Desse total, 41.798 trabalhadores ficaram permanentemente incapacitados para o trabalho” EC – Como os empregadores justificam as jornadas de trabalho excessivas ? Margarida – Usam o batido argumento das dificuldades, da possibilidade de fechar a empresa ou mudar de região, da necessidade de oxigenar e enxugar gastos. São ameaças que rondam o cotidiano dos trabalhadores, como metáforas e fofocas que desestabilizam e facilitam a adesão de todos às mudanças, mesmo que essas signifiquem maior dedicação e, consequentemente, maior autossacrifício em nome da produtividade ; ou maior índice de adoecimentos por concentração de tarefas. E o contexto da crise mundial é providencial, pois os ajuda a justificar suas práticas de diminuição de despesas mesmo quando a concentração da riqueza continua em mãos de poucos. EC – De que forma a precarização esvazia de sentido o trabalho? Margarida – Sabemos que o homem compõe a sua existência tendo como base os pilares da afetividade nos variados e diversificados encontros que constrói durante sua vida no trabalho. Essa dimensão é fundamental, mesmo quando reconhecemos que os pilares afetivos nem sempre estarão ancorados em afetividade ética e daí as infinitas composições da vida. É no trabalho que você vive grande parte do seu dia e ali a composição ética entre os corpos daqueles que-vivem-do-trabalho, depende direta ou indiretamente das ideias criativas, da autonomia, do saber-fazer, do reconhecimento daquilo que faz, do respeito mútuo. Esses aspectos sustentam os afetos de solidariedade, permitindo bons encontros no coletivo. Quando esse ambiente é flexibilizado e precarizado, dominado por pressões e humilhações, exigências de metas e violações constantes, o que resta ? Um homem fragmentado, dividido, sujeitado. EC – O que é legal e aceitável e o que pode ser considerado excessivo em termos de jornada de trabalho ? Margarida – Todo ser humano necessita descansar, dormir e repor as energias, vivenciar a família e acompanhar o crescimento dos filhos. Deve ter tempo para lazer. Quando a jornada excede as 8 horas diárias, que já são muito se consideramos o avanço tecnológico, se torna inaceitável e imoral, pois representa uma exploração imposta ao corpo e à mente dos trabalhadores e trabalhadoras, que leva mais precocemente aos adoecimentos. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Organização Mundial da Saúde (OMS) defendem o trabalho seguro e decente. E aqui não se pode falar minimamente em decência dos empregadores ante um novo ideário político neoliberal de livre comércio que prima pela menor presença do Estado com poder regulador das relações entre capital e trabalho. Somos um país em que apesar das subnotificações, tem um altíssimo índice de acidentes, doenças e morte em consequência do trabalho, e adoecer ou morrer do trabalho é perverso e indecente. O trabalho fere, adoece e mata cotidianamente centenas de trabalhadores e trabalhadoras em nosso país. É só olharmos as estatísticas oficiais. Por isso, a OIT chama a atenção para as mudanças na organização do trabalho associadas ao avanço tecnológico nos locais de trabalho, o que tem contribuído de forma decisiva para o surgimento de novos riscos no ambiente laboral. Esses avanços acarretam novas consequências à saúde e à segurança do trabalhador. Deste modo, os novos riscos convivem lado a lado com os velhos e estão concentrados em três categorias : as novas tecnologias e processos de produção, advindos como, por exemplo, com a nanotecnologia, a biotecnologia ; as novas condições de trabalho, ou seja, as jornadas prolongadas, a intensificação do trabalho, o aumento do setor informal etc. E, por último, as novas formas de emprego, como o emprego independente, parcial, em casa, a subcontratação, os contratos temporários e tantas outras formas de contrato. EC – Quais são as profissões mais expostas ao abuso de poder por parte do empregador? Margarida –Sem dúvidas as profissões relacionadas ao setor da Saúde, da Educação, Comunicação e Serviços. Não há setor que explore menos ou mais. Há formas de degradação das relações e condições de trabalho que são mais caóticas, desumanas como, por exemplo, o trabalho infantil, o trabalho escravo, o trabalho dos imigrantes, e até diria o trabalho dos negros e deficientes, regados frequentemente com práticas discriminatórias e atos racistas EC – No caso dos professores, as novas tecnologias estenderam ainda mais o trabalho extraclasse… Margarida– Os professores não ficaram isentos das transformações que ocorreram na sociedade e, em especial, na educação. Essa profissão lida com valores, com afetos e emoções e seu foco está centrado no ser humano, informação e formação do outro. Portanto, sua prática está permeada pelo cuidar, administrar e também zelar pela formação e preparação. Como lidar com valores de competição, quando você deve formar o jovem para o mercado que aí está e ensinar-lhe que seja “um vitorioso sobre os outros”, sem se importar com o sofrimento que pode causar ? Como lidar com essas demandas que lhes são impostas como as jornadas prolongadas, exaustivas, a falta de reconhecimento e o pouco tempo para estudar e aprimorar seus próprios conhecimentos ? A pressão da organização é grande, o que gera conflitos internos, sofrimento que pode desencadear ou ser consequência dos transtornos e adoecimentos. Para dar conta da demanda, muitas vezes tornam-se subservientes por necessitar do emprego ou mesmo se calam como estratégia defensiva, como forma de aguentar o insuportável. É uma condição que pode levar à perda de identidade, desprazer, na medida em que as exigências aumentam e as condições de trabalho regridem, alterando a relação do docente com alunos, colegas e sua família. O professor está submetido à lógica perversa do produtivismo acadêmico, que ao invés de alavancar o desejo, o prazer e o conhecimento, o emperra, levando ao fracasso de uma política que se baseou na eficácia quantitativa e monetária, que acumula fortunas e não conhecimentos. “Muitas vezes a política adotada pelas empresas tem sido de fuga ou até mesmo de culpabilizar o corpo técnico. É uma forma perversa de lidar com a vida humana, menosprezando aqueles que produzem riquezas” EC – Qual a relação entre condições de trabalho e adoecimento de professores? Margarida – Há um grande estudo da década de 90, realizado por pesquisadores da Universidade de Brasília, que aponta a Síndrome de burnout como dominante entre professores. Em 2010, participaram da pesquisa 1.821 professores. Nos resultados e análises dos dados fica evidenciada a relação entre adoecimento e condições de trabalho, ou seja, 63,2% dos pesquisados referiram jornadas prolongadas e extenuantes. Os sintomas mais comuns continuavam sendo cansaço, nervosismo, perda de voz, fadiga/cansaço, dores de cabeça etc. EC – Por que o descaso com a saúde do trabalhador deve ser visto como ‘homicídio culposo’ ? Margarida – É dever dos empregadores garantir um ambiente de trabalho sadio, sem riscos ou com os riscos controlados e que não exponha os trabalhadores a doenças e mortes. Na medida em que o empregador prioriza as medidas de proteção individual e não interfere nas condições de trabalho, ele é responsável. E mais, toda empresa possui técnicos capazes de assinalar os riscos, os possíveis danos a que estão expostos os trabalhadores. Apontam sugestões e propõem medidas, mas falta a eles autonomia para fazer. Quando ocorre um agravo ou morte que poderia ter sido evitada, o empregador deve ser responsabilizado por sua omissão. Muitas vezes a política adotada pelas empresas tem sido de fuga ou até mesmo de culpabilizar o corpo técnico. É uma forma perversa de lidar com a vida humana, menosprezando aqueles que produzem riquezas. https://www.extraclasse.org.br/edicoes/2012/10/jornada-de-humilhacoes/O assédio moral é uma doença organizacional
Em entrevista cedida com exclusividade ao Observatório Social, Ângelo Soares, pesquisador e professor da Universidade do Quebec em Montreal (Canadá), fala sobre assédio moral, emoções e saúde mental no trabalho. Nesta quinta-feira (23), Soares ministrou a palestra Assédio Moral: quando o trabalho é indecente, realizada em São Paulo pelo Instituto Observatório Social e pela Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro (Contraf-CUT). Doutor em sociologia do trabalho, Soares ensina nos cursos de comportamento organizacional, violência no trabalho e administração de recursos humanos.
Fonte: Paola Bello, IOS
Instituto Observatório Social: O que difere o assédio moral das outras formas de violência?
Ângelo Soares: O assédio moral é uma forma de violência psicológica. O que a difere é que ela não deixa traços visíveis no indivíduo. Mas, com certeza, é uma violência que destrói, e muitas vezes muito mais que a violência física. Os efeitos psicológicos são devastadores para a pessoa que vive o assédio moral.
IOS: Quais são os principais atos caracterizados como assédio moral?
AS: Temos pelo menos cinco tipos que classificam esses atos. Pode-se limitar a comunicação da pessoa, impedindo que a pessoa se comunique e se exprima. Também pode acontecer que se mine as relações sociais dessa pessoa, tentando isolá-la dos colegas do trabalho, por exemplo, trabalhando em um lugar distante do grupo. Também temos atos associados a criticar a pessoa enquanto ser humano, dizendo, por exemplo, que ela está louca, que é frágil, que tem problemas. O quarto tipo de ato é criticar o trabalho da pessoa, onde é comum se ver situações onde passam para a pessoa tarefas que ela não é capaz de fazer, ou que são difíceis de realizar, ou tarefas inferiores à competência e capacitação que a pessoa possui. E a quinta categoria de atos é o comprometimento da saúde da pessoa. Essas ações, quando combinadas ou repetidas ao longo do tempo, caracterizam assédio moral.
IOS: Qual a diferença entre o assédio moral e o assédio sexual?
AS: Sempre que há caráter sexual, com ou sem violência física, é assédio sexual. Pode ser desde a expressão do interesse até a agressão física, como passar a mão, beliscar, tocar os seios. O assédio moral, na maioria das vezes, não é físico. Em geral são ações e palavras com a intenção de destruir psicologicamente a pessoa. Muitas vezes eles podem vir juntos. A pessoa é assediada sexualmente e recusa, já que no assédio sexual é muito importante que a pessoa exprima claramente que não está interessada por aquilo, e essa expressão pode ser até por carta reconhecida em cartório. Mas é comum acontecer, depois que a pessoa recusa, ela passar a sofrer assédio moral com a intenção de eliminá-la do ambiente do trabalho. Em um caso ou no outro, não podemos esquecer que toda forma de violência tem efeito psicológico, e às vezes uma ameaça destrói mais que um tapa na cara. Porque você pode mostrar que o tapa existiu, ele pode deixar marcas. Mas a ameaça é invisível e causa efeitos que não se podem mostrar.
IOS: Há setores onde o assédio moral é mais recorrente?
AS: É muito difícil identificarmos um grupo. Todo mundo pode ser assediado moralmente. Isso é um problema associado à organização do trabalho, aos modos de gestão, à estrutura da empresa. Todas essas variáveis são importantes e estão na base do assédio moral. É uma forma de violência que pode atingir do lavador de carro ao médico ultra-especializado. Não há um perfil de quem seja mais ou menos assediado.
IOS: É possível traçar um perfil das causas dessa violência?
AS: As causas estão intimamente ligadas à organização do trabalho, à forma com que o trabalho é realizado na organização. Isso envolve hierarquia, carga de trabalho, autonomia que a pessoa possui ou não, reconhecimento do trabalho, e diversas outras questões. É importante deixar claro que o assédio moral não é um problema individual. Não é o indivíduo que está com problema. O assédio moral é uma doença organizacional, e deve ser tratado desde a origem, mudando a organização do trabalho, a ausência da liderança, as formas de resolução de conflitos.
IOS: O que o trabalhador que se sente assediado pode fazer?
AS: Uma ação importante para o trabalhador que acha que está sendo assediado moralmente é a produção de um diário, uma agenda sólida, na qual não possam ser inseridas ou retiradas páginas. Nela, o trabalhador pode fazer relatórios diários, escrevendo o que viveu em cada dia. Mesmo que ele ache que não seja assédio, é importante escrever, registrar, e deixar que uma pessoa de fora faça esse julgamento. Escreva o que viveu, como se sentiu, como respondeu, se teve alguma reação, o que aconteceu. Escreva e não faça rasuras. Se esqueceu de escrever alguma coisa no dia primeiro do mês e já estamos no dia 23, escreva na página do dia 23 que esqueceu de relatar o que aconteceu no dia primeiro. Com isso, é mais fácil identificar o assédio, e facilita a pessoa que irá fornecer ajuda, porque a história toda está contada de forma linear, e pode ser um importante elemento de prova.
IOS: Depois de feito esse diário, quem ele pode procurar?
AS: Se a pessoa for sindicalizada, ela deve procurar o sindicato. O sindicato deve ajudar e responder a esse problema, além de indicar ajuda psicológica.
IOS: Quais os principais efeitos do assédio moral sobre a vítima?
AS: Ela pode apresentar problemas relacionados à saúde mental, pode ter estresse elevado, pode desenvolver sintomas de estresse pós-traumático e sintomas depressivos. Não podemos desconsiderar os efeitos que vão refletir nas pessoas próximas a ela, na família e no círculo social. Há também, e em muitos casos, a exclusão do mercado do trabalho, seja por adoecimento, seja por desemprego.
IOS: Como os empregadores podem agir para eliminar o assédio moral?
AS: As empresas devem estar preparadas para o problema. É preciso ter uma política organizacional conhecida por todos, para que todos saibam o que podem ou não fazer. Se acontecer o assédio, a empresa deve falar como vai tratar. É importante que a empresa não feche os olhos. O grande erro é pensar que não existe na minha empresa e, como conseqüência, não pensar nas medidas para prevenção e para evitar essa forma de violência. Quando a empresa está atenta ao problema, é mais difícil que ele aconteça.
IOS: A ação relacionada ao assédio moral difere de acordo com o sexo ou a idade da vítima?
AS: Nas pesquisas que realizei, não encontrei diferença no assédio contra homens e mulheres. O que encontrei foi diferença relacionada à faixa etária das vítimas. Tanto os mais jovens quando os mais velhos são assediados, mas o são de maneira diferente. Os gestos contra os mais jovens são para desacreditar a pessoa, são para afetar a reputação pessoal. Por outro lado, os gestos usados para assediar os mais idosos, com mais tempo de trabalho, são gestos para desacreditar o trabalho que eles realizam, a sua reputação profissional.
IOS: O que as pessoas, como sociedade, podem fazer para acabar com o assédio moral?
AS: Temos que agir de forma pró-ativa na prevenção. Quando o mal é feito, é um mal muito grande, é muito sofrimento para a vítma. Devemos tentar prevenir sempre e, nos casos onde não consigamos prevenir, devemos intervir de maneira rápida e eficiente, para limitar ao máximo o estrago feito.
Prática cresce em momentos de crise
Prática cresce em momentos de crise
O portal www. assediomoral.org, que reúne profissionais na área da saúde com o objetivo de identificar e coibir a prática de assédio moral no Brasil, teve um crescimento significativo no número de acessos nos últimos meses. Em função da crise econômica mundial, aumentam os relatos e, com isso, houve um crescimento de 20% na procura por informações. De acordo com Cármen Sílvia Silveira de Quadros, especialista em Medicina do Trabalho, isso acontece porque a concorrência é maior e as ameaças são constantes.
Jornal do Comércio – Em momentos de crise, a incidência do assédio é maior? Por quê?
Cármen Quadros – Sim, porque a crise vem sempre acompanhada por reestruturações que as empresas fazem. A pressão aumenta, as exigências são maiores e as ameaças constantes. Cria-se um verdadeiro clima de medo, terror e sujeição coletiva. O fato de o número de acessos aumentar tem relação a esse sentimento de desamparo, de necessidade de informações. As pessoas têm receios de serem estigmatizadas, de não encontrar um novo emprego. Quando entram em contato conosco querem ajuda, pedem socorro.
JC – O trabalhador submetido ao assédio moral pode desenvolver doenças?
Cármen – O assédio moral é um risco à saúde do trabalhador que pode trazer inúmeras consequências, inclusive o adoecimento físico e mental. Trabalhadores que sofrem assédio moral sofrem de distúrbios digestivos, taquicardia, palpitações, sintomas depressivos (insônia, crises de choro, lapsos de memória, sentimento de desvalia), hipertensão arterial sistêmica. O assédio tem ligação direta com as mudanças que o processo de globalização econômica impôs ao mundo do trabalho: a flexibilização das relações trabalhistas, a precarização dos vínculos e a reestruturação das empresas que acabam reduzindo os postos de trabalho, sobrecarregando os trabalhadores e aumentando a concorrência entre eles.
JC – Há setores em que a prática do assédio seja mais comum?
Cármen – Em primeiro lugar, no Brasil, aparece o setor da saúde, seguido da educação, comunicação e serviços; em especial bancários. Saliento que em todos os ramos produtivos, categorias e empresas, quer pública ou privada, filantrópicas ou ONGs, existe a prática de assédio moral. Há uma pesquisa nacional que contempla todos os estados, com dados e data de 2005, que aponta sinais objetivos do crescimento do assédio moral no País.
JC – Qual é o impacto psicológico para a vítima?
Cármen – Os danos psíquicos surgem como angústia e ansiedade. O trabalhador pode manter e aprofundar pensamentos tristes e repetitivos, apesar do esforço para se curar. A pessoa se avalia negativamente e culpa-se pelo que está sofrendo. Aparecem sinais de alarme do organismo: alterações de comportamento, distúrbios digestivos, dores de cabeça, sensações de dores que migram. Pode chegar à depressão e à síndrome do pânico. Esse processo de instauração da doença varia de indivíduo para indivíduo. Existem casos relatados que o dano psíquico causado pelo assédio moral leva o trabalhador a um quadro de depressão grave com risco de suicídio.
JC – A empresa perde força de trabalho com esse tipo de prática?
Cármen – Perde a força de trabalho e, consequentemente, reduz a produtividade em função dos agravos à saúde física e mental dos trabalhadores. Como ficam doentes, necessitam muitas vezes se afastar para tratamento. Cabe salientar também que atitudes de humilhação e terror psicológico interferem negativamente no ambiente de trabalho, causando desestabilização e desmotivação.
Pode acabar resultando em altos custos para a empresa também pelas perdas econômicas em processos produtivos e da imagem pública. Mas o maior prejudicado é o trabalhador. Há casos em que ele começa a apresentar atitudes irresponsáveis enquanto pai, esposo, irmão, de afastamento e perda de amigos, de aumento de consumo de drogas, de separações e até de suicídio.
JC – Quem não é vítima direta do assédio, mas presencia esse tipo de ato com o colega pode sofrer reflexos?
Cármen – Esta é uma situação que, infelizmente, ainda ocorre e que não ajuda a empresa a se livrar desse tipo de prática. O trabalhador que se cala ante as injustiças e a empresa que se nega a discutir os fatos e a pensar políticas de combate à violência, não estão tomando a melhor conduta. Entretanto, é necessário que a empresa compreenda que ela perde quando o ambiente de trabalho está degradado, quando o clima organizacional.
JC – Quando o trabalhador se sente vítima de assédio, qual procedimento deve adotar?
Cármen – Do começo ao fim desse processo, o trabalhador não deve se isolar, e sim conversar com colegas, amigos, família e, se for acaso, procurar apoio psicológico. Ao ser alvo do primeiro ato de agressão, deve ficar mais atento. Se isso se repetir, precisa conversar com o chefe ou quem quer que seja o autor da agressão, de preferência acompanhada de um colega. Diga que o ocorrido o ofendeu e que deseja uma explicação.
Se isso não resolver, comece a recolher provas. Anote tudo sobre cada ocorrência, incluindo dia e hora que aconteceu, o que foi dito e quem presenciou. Faça uma carta em duas vias relatando o que tem ocorrido e encaminhe para a ouvidoria, o RH ou o superior do assediador. Entregue uma via e peça para que a outra seja assinada, comprovando o recebimento.
Se não der em nada, denuncie no sindicato de sua categoria ou na Superintendência Regional do Trabalho e do Emprego (a antiga Delegacia Regional do Trabalho), que possui uma comissão de combate à discriminação no ambiente profissional. Uma mesa de reconciliação será convocada, com sua presença, a de um representante do sindicato e outro da empresa. A ideia aqui é negociar uma solução para que você permaneça no emprego, mas o assédio cesse. Se não houve acordo, resta recorrer à Justiça.
Homenagem: Previdência entrega prêmio Mulher Guerreira
O Ministério da Previdência Social concederá, nesta terça-feira (11), o Prêmio Mulher Guerreira para três personalidades que se destacaram na vida pública e que são exemplos para a sociedade.
O ministro Luiz Marinho fará homenagem póstuma à Maria Cristina Souza Felipe da Silva, perita médica da Previdência Social que foi assassinada em frente a sua casa em setembro de 2006. Ela foi morta por lutar contra uma quadrilha de fraudadores da Previdência. A família receberá a homenagem, a entrega do troféu Mulher Guerreira 2008.
Outra homenageada com o troféu Mulher Guerreira é Creuza Maria Oliveira, presidente da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), por sua luta pelos direitos das empregadas domésticas brasileiras.
A terceira mulher a receber o troféu é a médica Margarida Barreto, que foi uma das primeiras pessoas no país a estudar o problema do Assédio Moral no Trabalho.
No ano passado as ministras Marina Silva, do Meio Ambiente, e Nilcéia Freire, da Secretaria Nacional de Políticas paras as Mulheres, foram as homenageadas com o prêmio Mulher Guerreira 2007.
A cerimônia de entrega do prêmio será às 16 horas, no auditório dos Ministérios da Previdência Social e do Trabalho e Emprego.
Informações para a Imprensa
Leônia Vieira
(61) 3317-5113
ACS/MPS
Ecologia humana
A médica Margarida Barreto, da equipe do site “Assédio moral no trabalho – Chega de humilhação!” (www.assediomoral.org.br) fala com exclusividade à Folha do Meio sobre esta atitude comportamental que tanto transtorno e situações desconfortáveis provoca sobre colegas.
FMA – Quais os fatos que levaram a criação do site?
Margarida Barreto – Após a defesa que fiz no Mestrado, em 2000, “Uma Jornada de Humilhações”, surgiu uma demanda por palestras sobre o tema. Foi quando uma jornalista ligada ao movimento sindical publicou uma entrevista comigo. A pequena matéria acabou veiculada na coluna de Mônica Bergamo, da Folha de S. Paulo. E eu fui surpreendida com telefonemas de várias emissoras e jornais que queriam entrevistas. Fiquei surpresa. Desde aquele momento, as solicitações da mídia nacional e internacional tem sido constante. O tema foi capa de várias revistas e objeto de inúmeras reportagens, artigos, entrevistas para rádio, televisão e sala de conversas “on-line”, assim como de incontáveis seminários, encontros, tribunal popular, oficinas etc. A demanda do movimento sindical e de redes sociais foi o motivo que nos levou a idealizar uma forma de dar mais visibilidade às informações e socializar o conhecimento. Criamos o site, que foi idealizado por mim e Maria Benigna Arraes Gervaiseau. Nossa idéia é que essas informações sejam apropriadas pelos trabalhadores, pesquisadores e demais interessados no tema. Por isso, pensamos em um site com muita informação, e disponibilizamos tudo o que sabíamos, de uma forma acessível e fácil!
FMA – Há uma estimativa do número de trabalhadores que sofre este tipo de assédio?
Margarida – Sim. Em nossa segunda pesquisa, que é nacional, foram distribuídos 42 mil questionários específicos para todos os trabalhadores de diferentes categorias em todos os estados do Brasil. Era um questionário especifico para aqueles/as que em algum momento de sua vida, houvessem sofrido o assédio moral e não tinham ferramentas teóricas para identificá-lo. Destes questionários, 10.600 foram devolvidos, correspondendo a um percentual de 15,7%, a Nordeste com 12.4%, a Centro-oeste com 5,5% e a Norte com 2,5%.
FMA – Qual o perfil do assediador e o da vítima?
Margarida – Geralmente o assediador é uma pessoa autoritária e até mesmo insegura, que exerce a tirania e comanda os trabalhadores como se estivesse comandando uma batalha, uma guerra. Quanto aos inseguros, escondem seu medo, imaturidade e inexperiência, tiranizando e exigindo que todos se submetam e façam o que ele ordena. Tiranizam humilhando, constrangendo, desqualificando. Ele tem medo que seus pares e subordinados possam constituir um perigo a sua permanência na empresa. Tem medo de ser descoberto em sua incapacidade de relacionar-se. Para ele, qualquer questionamento pode significar uma ameaça. O autoritário é uma personalidade muito comum naqueles que detém o poder. Não conseguem liderar e sim mandar como se o outro fosse uma coisa.
FMA – O problema é sempre com o chefe imediato?
Margarida – Há outros chefes que acreditam que o sucesso da empresa depende exclusivamente de sua capacidade de exigir e subjugar os trabalhadores. Isto se deve em muito à cultura organizacional de uma empresa, a forma de organizar o trabalho, a natureza e processo de socialização da produção, o que resulta em sofrimento para o coletivo.
FMA – E a vítima?
Margarida – Quanto a vitima, normalmente são pessoas que têm como característica fundamental ser um profissional que gosta do que faz, apaixonado por seu trabalho, capaz, brilhante, inteligente, criativo e com grande sentimento de justiça. Têm capacidade de liderança nata e fazem amizade fácil, influenciando as pessoas em volta com suas idéias. É dedicado ao trabalho e sabe questionar, não aceita as injustiças. Todos admiram sua capacidade. Com o assédio moral, adoecem do trabalho, ficam afastados e perdem sua capacidade produtiva. Especialmente as mulheres, os mais velhos, negros, integrantes de comissão de segurança no trabalho e dirigentes sindicais combativos.
FMA – E necessário o tratamento psicológico?
Margarida – Sim, a vítima é destroçada e, vamos dizer assim, assassinada psiquicamente em sua criatividade, ela deve ser encaminhada a algum serviço especializado de apoio psicológico. Ela precisa de apoio moral, escuta atenta e respeitosa e tratamento psicológico. Algumas vezes, de acompanhamento psiquiátrico. A empresa deve garantir à vítima o médico, o psicólogo e apoio social.
FMA – E quanto ao assediador?
Margarida – Quanto ao tirano, precisa refletir sobre suas ações e atos, ele é consciente do que faz e porque faz. Cabe puni-lo, responsabilizá-lo e deixar claro que não se vai tolerar esse tipo de prática. A empresa não deve agraciá-lo com condecorações, premiações ou promoções. Esta ação, de 25,20%, e foi neste universo que trabalhamos. Quanto às regiões em que existe mais casos de assédio, temos a Sudeste com 63,8%, a Sul com comum em algumas empresas, contribui para a permanência destas práticas nefastas.
FMA – A senhora atribuiu o fenômeno às novas relações de trabalho. Parece que o problema sempre existiu mas agora foi identificado…
Margarida – Antigamente se falava que o chefe perseguia, que a chefe era arbitrária, coisas assim. É um fenômeno velho com novas características e novas causas.
O mundo do trabalho na configuração que hoje temos, é violento. Há uma guerra invisível na medida em que adoece e mata centenas de trabalhadores e trabalhadoras.
Só para dar uma idéia, dados do Ministério da Previdência, em 2006, referem a ocorrência de 503.890 acidentes do trabalho, resultando na morte de mais de 2.700 trabalhadores e a incapacitação permanente de 8.300 mil pessoas. No passado, poderíamos dizer que a violência nascia das relações interpessoais, hoje já não podemos falar nesta linearidade causal. Desde o final dos anos 80, o mundo do trabalho vem sofrendo mudanças de forma acelerada: tanto na forma de organizar o trabalho como na forma de administrar as políticas. Isto leva a uma diminuição do número de trabalhadores e aumento da sobrecarga de trabalho graças às políticas de reestruturação e reengenharia que objetivam enxugar as gorduras e diminuir os gastos.
FMA – Como atuam governo e instituições públicas?
Margarida – A primeira instituição pública a assumir no código de ética e na ouvidoria a questão do assédio moral foi a Petrobras. E nem por isso a prática do assédio moral desapareceu na empresa.
Os ministérios, como o Planejamento, têm discutido e inclusive realizado uma pesquisa. Quanto a legislação, alguns estados e municípios têm leis específicas. Em São Paulo, no entanto, o governador vetou a Lei 12.250 (fevereiro/2006) alegando inconstitucionalidade. É uma lástima que governantes que se dizem comprometidos com a ética e a justiça, tapem os olhos à realidade e achem natural que exista discriminação, constrangimentos, desqualificações e variadas punições com seus servidores.
FMA – Quais os setores que mais apresentam assédio moral?
Margarida – Os setores que mais sofrem o assédio moral são a saúde (enfermagem, médicos) educação (escolas e academias) , serviços (bancos) e comunicação (jornalistas).
“O autoritarismo é a grande ferramenta daqueles que não sabem comandar”
Fonte: Jornal do Judiciário – Edição nº 323 – 22/Agosto/2008 – Página 4
Jornal do Judiciário – Quando a sra. iniciou as pesquisas sobre o tema? Desde então tem visto avanços no combate à prática ou aumentou o assédio moral nos locais de trabalho? Quais seriam as causas?
Margarida Barreto – De forma organizada e como pesquisa acadêmica, foi em março de 1996. Entretanto, tudo começou em 1992 quando comecei a trabalhar no Sindicato dos Trabalhadores Químicos e Plásticos de São Paulo. Lá, ouvia história de sofrimento que de alguma forma me incomodava pois não conseguia vê os trabalhadores como culpado pelo processo de adoecimento, da doença ou do acidente ocorrido. Acreditava que existia algo que fugia ao meu entendimento de ginecologista, pois estava começando a atuar na área da Medicina do Trabalho. E por isso, fui para Psicologia Social e me submeti ao mestrado. Queria compreender o grito de sofrimento…. A dor do outro. Fiz varias tentativas para compreender e refletir o que ocorreu (e e ainda ocorre) no mundo do trabalho e relações laborais. O que acontece? Tivemos, nestas duas ultimas décadas, mudanças nos processos produtivos, reestruturações e reengenharias. A medida que o processo de globalização se expandia, os efeitos nefastos foram imediatos (e continua): desregulamentações, perdas de direitos , imposição de políticas de cunho neoliberal e pensamento único caminharam juntos, resultando em assimetrias no desenvolvimento regional, precarização do trabalho, baixos salários, incerteza quanto a permanência no emprego. Era necessário que estimulassem o individualismo e competitividade. Aos poucos, o pensamento único impôs-se em especial, no plano ideológico. Nunca vivemos tempos como o atual, em que se nega ou se tenta neutralizar e até ridicularizar a variante ideológica, em qualquer discussão, resistência ou conflito. Em síntese, a causa do assedio moral está relacionada a dois fatores: cultura organizacional e forma de organizar o trabalho. Como variáveis temos a competição exacerbada, a hierarquia assimétrica e centralizada, estágios mal definidos, cultivo da cultura da indiferença e insensibilidade pelo sofrimento alheio; falta de pessoal o que leva a sobrecarga física e mental de trabalho, obrigando a trabalho suplementar; A prática do assédio moral está ancorada na busca desenfreada dos resultados, no aumento da produtividade e lucratividade, em um clima organizacional de pressão e opressão à todos os trabalhadores e trabalhadoras. Felizmente existe a resistência e luta de muitos trabalhadores e trabalhadoras, que ainda acreditam na possibilidade de um mundo do trabalho no qual predomine relações respeitosas, dignas e humanas.
JJ – Quais são as diferenças entre o assédio no serviço público e no setor privado?
MB – No setor privado, todo o processo dura menos tempo. No máximo, 1 ano ou pouco mais. No setor publico ao contrário: se prolonga no tempo, sendo comum o trabalhador conhecer a dança da cadeira ou melhor: vão de um setor a outro, de uma região a outra, na esperança que o assédio se transforme em coisa do passado, o que nem sempre acontece, pois leva consigo o estigma e o assédio se repete.
JJ – Como estabelecer um nexo causal entre os sintomas da vítima e o ambiente de trabalho?
MB – Está fundamentado na escuta clínica apurada ou melhor, na história ocupacional, o que faz e como faz. O importante é sabermos como se estabelecem as relações no meio ambiente laboral, quais as mudanças que ocorreram no processo de organizar e administrar o trabalho, qual a cultura organizacional que predomina, se o sistema de avaliação é usado para estigmatizar, como o contingente de trabalhadores atende a demanda imposta, se há ou não respeito nas relações hierárquicas, se os horários de trabalho são regulares ou não, pois os padrões temporais tem múltiplos determinantes e podem afetar desde os relacionamento em família ate a saúde dos trabalhadores, na medida em que empobrece a comunicação, enfraquecendo os laços de amizade.
JJ – Na pesquisa sobre assédio moral nos locais de trabalho, realizada pelo Sintrajud, qual índice chama mais atenção?
MB – Toda a pesquisa é reveladora de uma realidade vivida. No caso desta categoria, poderíamos pensar, por suas características, que primasse o respeito ao outro nas relações de trabalho. Ledo engano. O que temos, apesar do tema ser conhecido de todos? Uma certa naturalização e banalização destes atos e que segundo as respostas, são mais praticados por mulheres em cargos hierárquicos! É surpreendente o percentual de trabalhadores e trabalhadoras que já foram vitimas deste tipo de prática. Também é lastimável, pois o autoritarismo é a grande ferramenta daqueles que não sabem comandar, não sabem liderar, e neste sentido, revela uma certa impotência. As mudanças emocionais dos trabalhadores certamente começam com as mudanças nas relações especialmente quando não há o reconhecimento e respeito ao esforço e trabalho desenvolvido pelo outro.
JJ – Qual a importância dos sindicatos no combate ao assédio moral nos locais de trabalho?
MB – É fundamental que reflitam as múltiplas contradições existentes na relação capital x trabalho, mesmo aquelas que ao primeiro olhar, pareçam sutis e inexistentes. O contato com os trabalhadores, da base à administração, não pode ser esquecido. Devem pensar e elaborar estratégias de resistência para enfrentar esses diferentes e complexos problemas que hoje se apresentam e que estão relacionados a uma maior exploração. Caracterizar as condições objetivas do trabalho, refletir as mudanças e transformações que ocorreram nestes últimos anos, analisar o aumento da riqueza em mãos de poucos e não em mãos dos trabalhadores, para responder de forma coletiva as novas demandas quer no plano organizativo ou de intervenção social, se quisermos de fato, uma outra sociedade na qual impere relações fraternas e humanas e não relações egoístas centradas no Eu que lida com o outro como se fosse uma mercadoria, consumindo tudo e todos, de forma desenfreada. Não podemos abrir mão de lutas fundamentais como o direito ao trabalho, a segurança, a estabilidade no emprego, a redução da jornada de trabalho, a defesa dos direitos laborais conquistados. Devemos ampliar o arco de conquistas, combatendo, denunciando e resistindo de forma eficaz a toda e qualquer manifestação de precarização do trabalho. Essa, é uma necessidade histórica, que ainda não realizamos.
JJ – Como as novas formas de organização do trabalho, focadas somente na produtividade, podem propiciar o assédio moral?
MB – Quando falamos em produtividade estamos falando de produção e produtos em todas as áreas da empresa. Ou melhor, desde finanças, pessoal, compras, vendas, apoio até a produção. Todas as empresas, quer publica ou privada e de diferentes ramos produtivos, instituíram e perseguem programas de qualidade e produtividade que associados a novas formas de administrar com envolvimento de todos e todas, tragam elevação acentuada da produção e aumento dos ganhos com diminuição dos custos e gastos. Para alcançar esses objetivos, dizem ser necessário: metas desafiadoras e que possam ser alcançadas; motivar a equipe para esses ideais; zerar o defeito do produto, rumo a qualidade total. Enquanto o ciclo avança, a sujeição e o medo se instaura no coletivo. Os trabalhadores sentem o perigo de serem excluídos e por isso, baixam a cabeça e obedecem. Esse comportamento permite aumentar o controle, exigir mais firmemente, dá ordens acima do aceitável, abusar do poder. Em conseqüência, o ambiente propicia os desmandos, os constrangimentos, as ameaças. Não esqueçamos que a eficiência dos resultados estão diretamente relacionadas com as formas de administrar e organizar o trabalho, o controle e disciplina do coletivo e a exigência de produtividade máxima para todos. Para se chegar a esses objetivos foram mexendo inicialmente nos layouts, criando novos espaços para gerentes e supervisores, dando ares de modernidade ao ambiente e começou-se a falar em ambientes “cleans” propiciavam harmonia, humanismo, possibilitavam mais bem estar e mais produtividade. E só este aspecto dobrou a produtividade. Mas, estes senhores deviam mexer com outros setores…restou ao final a produção e suas rotinas… Aqui o “layout” foi com as pessoas ou seja: diminuir os considerados excedentes e improdutivos; contratar estagiários com salários 1/3 menores que os antigos trabalhadores, terceirizar serviços. A produtividade dobra, e se isso ocorre é porque a pressão, o medo e silencio estão rolando no coletivo.
JJ – Como a vítima pode vencer a barreira do medo e denunciar?
MB – Aprendemos a ter medo por “n” condições. Temos medo ante uma ameaça objetiva. Não nascemos com medo, se o temos, é um aprendizado instituído socialmente, na relação com o outro. É um sentimento imposto por certas condições e situações. Este sentimento, pode nos ajudar a identificar, a conhecer e perceber os fatos que ocorrem ao redor ou no posto de trabalho. Quando as empresas utilizam esse sentimento para gerenciar e administrar pessoas, sua finalidade não é auxiliar o trabalhador, mas submetê-lo, tornando-o servil e sujeitado ao outro, obedecendo cegamente às ordens emanadas. é verdade que aprendemos desde terna infância que devemos obedecer as ordens do outro por medo de que, o caldo de sua ira, entorne sobre nós ou que o castigo divino caia em nós, nos impedindo de uma boa vida eterna. Deste modo, o medo nos paralisa, nos amortece e por medo nos tornamos indiferentes a dor do outro. Se não compreendemos o nosso medo e o superamos, o transformamos em pavor, pânico e alimentamos temores não somente de nossos atos mas, em especial, do outro que está ao meu lado. O poder do medo é tal que muitas empresas, hoje, administram pelo medo, usando ameaças e intimidações. Boa arma ideológica para impedir a participação ou se sindicalizar ou mesmo conversar na porta da empresa com um dirigente sindical. É o medo de ser visto, identificado e marcado. Vencemos o medo individual com ações coletivas. Só com o apoio e ajuda fraterna de muitos outros que me sinto forte para enfrentar, resistir e denunciar. Assim, devemos compreender o porque do nosso medo, descobrindo suas causas, o que está por trás desta emoção/sentimento e ter como perspectiva supera-lo, não permitindo que esse sentimento controle você, tornado-a uma boa presa para os opressores, que manipulam os nossos medos. Pode parecer difícil, mas com a ajuda e amizade de outros colegas, é mais que possível derrubar a barreira do medo e ultrapassá-la. Devemos sempre lembrar que resignar-se ao estabelecido ou imposto, é uma forma de morrer lentamente, de matar a nossa criatividade e assassinar a esperança que existe dentro de cada um de nós!
Assédio moral: risco não visível no ambiente de trabalho
Uma tragédia pessoal levou a ginecologista Margarida Maria Silveira Barreto a buscar novos rumos em sua vida e em seu trabalho. Pouco tempo depois, a saúde do trabalhador ganhava uma apaixonada e dedicada pesquisadora, cujo interesse se voltou para o, até então pouquíssimo discutido no país, tema do ‘assédio moral’. Hoje, Margarida integra o grupo de profissionais responsável pelo site ‘Assédio moral no trabalho. Chega de humilhação!’, e viaja por todo o país divulgando e incentivando discussões sobre a questão que afeta um sem número de trabalhadores. “Só no site, nós recebemos cerca de 300 denúncias por dia’, disse Margarida, que é autora do livro ‘Violência, saúde, trabalho – uma jornada de humilhações’ (Educ, 2000 e 2006), em recente palestra na ENSP.
Informe ENSP: O que é assédio moral? Ele pode ser considerado uma doença do trabalho?
Margarida Barreto: O assédio moral pode ser definido como a exposição de trabalhadores a situações vexatórias, constrangedoras e humilhantes durante o exercício de sua função, de forma repetitiva e prolongada ao longo da jornada de trabalho. É uma atitude desumana, violenta e sem ética nas relações de trabalho, que afeta a dignidade, a identidade e viola os direitos fundamentais dos indivíduos. No Brasil, o termo ‘assédio moral’ veio na esteira do ‘assédio sexual’, até porque o verbo assediar tem, segundo o dicionário Aurélio, o significado bem específico de “colocar o outro num cerco, não dar trégua e humilhar até quebrar a sua força, quebrar sua vontade”. Outras denominações também usadas são ‘assédio psicológico’, ‘tortura psicológica’ e, em alguns casos, ‘violência moral’.
O assédio moral não é uma doença, mas um risco não visível no ambiente de trabalho. Quando se identifica o assédio moral como doença, a tendência é de culpabilizar o trabalhador e de colocar a discussão no marco da biologia. Isso leva a um reducionismo muito grande, pois isola o problema e retira da análise o contexto social, as formações socioeconômicas e o processo histórico. Deixa de se considerar a existência das pessoas em sociedade e o indivíduo em sua relação com o outro, num cenário específico, que é o mundo do trabalho com a lógica do lucro.
É muito importante que as pessoas entendam, e essa é a nossa batalha. Nós já levamos essa discussão para profissionais da Saúde, para as universidades e para os sindicatos. De cinco anos para cá, no entanto, nosso foco tem sido a área do Direito – juízes, advogados, promotores, OAB, etc. -, pois percebemos que havia uma certa incompreensão no sentido do julgamento, e o problema acabava sendo atribuído à personalidade e à sensibilidade do assediado, ficando descartada a questão do ambiente de trabalho.
Informe ENSP: O que leva ao assédio moral?
Margarida Barreto: Para se entender a questão do assédio moral, é importante, antes de tudo, compreender as mudanças radicais que o mundo do trabalho sofreu nesses últimos 20 anos. Entre outras coisas, podemos falar da questão da ‘reestruturação’ intensiva das empresas, que se caracteriza, principalmente, pela demissão em grande escala. O resultado é que aqueles que ficam acabam sobrecarregados, realizando tarefas que corresponderiam a dois ou três funcionários. Outro conceito muito usado é o da ‘flexibilização’ que, na verdade, acaba sendo a flexibilização dos direitos, do tempo e da saúde do trabalhador. O trabalhador, cuja jornada de trabalho era de oito horas, passa a estar 24 horas por dia à disposição da empresa. Seu tempo passa a ser o tempo do poder e da produção. Tem ainda a questão da ‘empregabilidade’, na qual o trabalhador é responsabilizado pela sua própria atualização, a fim de se tornar empregável, isto é, um indivíduo pronto para atender ao chamado do mercado de trabalho. O trabalhador deixa de ser um ‘trabalhador’ para virar um ‘colaborador’, ou seja, nós nos tornamos colaboradores da nossa própria exploração. Tudo isso afeta diretamente a forma como as pessoas se relacionam no ambiente de trabalho e acabam formando um terreno propício para o assédio moral.
Informe ENSP: Qual o papel das empresas e organizações nos casos de assédio que ocorrem com seus funcionários?
Margarida Barreto: O assédio moral é um processo que se caracteriza pelo encadeamento de propósitos e de atuações hostis que, quando tomados separadamente, podem parecer insignificantes, mas cujas repetições constantes têm efeitos bastante nocivos. Ele desestabiliza emocionalmente a vítima do assédio, destrói o coletivo e a rede de comunicação no ambiente de trabalho. O assédio moral é um indicador da existência de violência instituída e institucionalizada e da imposição da lógica organizacional. Quando escutamos as vítimas de assédio, fica muito claro que há dois fatores fundamentais de causalidade dessa prática: a forma de organizar o trabalho e a cultura organizacional que banaliza a violência em nome da produtividade. No Brasil, ainda é normal uma postura de fuga das empresas. Elas raramente assumem que possa haver um caso de assédio moral no seu âmbito, e isso acaba fortalecendo a idéia, que a Justiça cada vez mais manifesta, de responsabilidade solidária da empresa nos casos de assédio moral.
Informe ENSP: Quais as principais características do assédio moral?
Margarida Barreto: Em quase todo caso de assédio moral, é possível identificar cinco momentos muito distintos, como se fosse uma raiz que se repete em todos os lugares. O primeiro passo do assediador é impedir a vítima de se exprimir. Então, nada do que ela diz tem valor ou deve ser ouvido. Daí, começa a fase do isolamento, que ela tenta superar aumentando o seu ritmo de trabalho e sua produção. Como isso não resolve, ela entra num caminho de auto-isolamento. Na continuidade do processo, o objetivo passa a ser desconsiderá-la junto dos seus colegas, desmerecendo seu trabalho, e desacreditá-la no seu ambiente de trabalho até, finalmente, comprometer a sua saúde. O interessante é que, para isso, utilizam-se estratégias muito sutis e até muito sedutoras.
Informe ENSP: No que consiste o assédio moral? Como se dá o processo? Que táticas são utilizadas pelo assediador?
Margarida Barreto: Eu aponto as táticas de relacionamento, de isolamento, de ataque e as ações punitivas de cunho pedagógico e disciplinar. Na questão do relacionamento, visando quebrar as relações existentes, há um incentivo à competitividade e à excelência, o que acaba fortalecendo o individualismo. No isolamento, a impressão que se tem é que o assediado tem uma doença contagiosa, ninguém quer ser visto com ele. As pessoas são colocadas na ‘geladeira’, isto é, num lugar onde não valem nada, são ‘queimadas’, por meio de fofoca, ou, simplesmente, ‘esquecidas’, uma tática muito usada com os que retornam de licença médica. Os ataques, por sua vez, são sempre velados, nada é muito explícito. O assediador fala mal com terceiros sobre o trabalho da vítima, ou sobre os riscos que ela corre de perder o emprego, deixando que ela ‘ouça a conversa’, por exemplo. Mas há ainda as ações punitivas, mais comuns no Norte e no Nordeste do país, mas que também ocorrem em outras regiões. Essas práticas de abuso de poder têm, claramente, o objetivo de sujeitar corpos e mentes não só do assediado, mas também dos demais. Quando presenciam as humilhações impostas ao assediado, as pessoas tendem a trabalhar mais e a se calar por medo de serem os próximos a sofrer abusos, perder o emprego ou ser identificado com a pessoa que está mal no ambiente de trabalho.
Quanto às ações, elas são as mais variadas possíveis – gritos, gestos grosseiros e obscenos, comportamento hostil, intolerância, perseguição sistemática e até violência física – cujo objetivo é desestabilizar emocionalmente a vítima, destratá-la, ridicularizá-la publicamente. As ameaças de desemprego, por sua vez, levam muitos a tolerarem o assédio, as acusações e a atribuição de apelidos depreciativos ou constrangedores, prática muitas vezes justificada pela imagem que o brasileiro tem de ser brincalhão. A insinuação de roubo é a facada final que se pode dar num assediado. Uma acusação injustificada é capaz de desestruturar qualquer pessoa.
Informe ENSP: Qual o perfil de assediadores e assediados?
Margarida Barreto: As pesquisam mostram que cerca de 90% dos assediadores são superiores hierarquicamente aos assediados, mas há casos em que o assédio é praticado pelo conjunto dos colegas e, até mesmo, por um subordinado. Quanto ao sexo, há homens e mulheres, dependendo mais do cargo que ocupam. Em mais de 10% dos casos com mulheres, o processo parte de um caso de assédio sexual. No caso dos homens, o assédio sexual se torna bastante delicado quando o assediador também é homem, pois isso quebra a reação da vítima.
Quanto aos assediados, eles são justamente aqueles que, de alguma forma, quebram a harmonia, porque questionam, sugerem e apontam problemas. São, geralmente, pessoas que buscam soluções para o coletivo, que se preocupam com os demais, ou seja, são os questionadores e, pasmem, os solidários. Como ele reclama, ele acaba sendo visto como aquele que vive fazendo drama ou criando casos, mas isso não é verdade. Outro grupo importante é dos portadores de doenças causadas pelo próprio trabalho. De forma geral, os mais velhos e as mulheres, principalmente as negras.
Informe ENSP: Quais os custos, quais as conseqüências do assédio moral?
Margarida Barreto: Para o trabalhador, o assédio representa um grande sofrimento, que começa com o medo, a ansiedade, a vergonha e o sentimento de culpa, entre outros. Como o sofrimento é a ante-sala do adoecimento, as coisas vão piorando, o estresse aumenta e isso pode levar inclusive a vícios diversos e ao suicídio. Quando começa o processo de sofrimento, o trabalhador fica imerso numa zona cinzenta em que ele não entende o que está havendo. É como se ele entrasse num túnel de emoções tristes, que acabam criando uma rede imaginativa que leva à repetitividade do pensamento. Ele só consegue pensar nisso. O sofrimento poda a sua criatividade e pode até afetar sua memória. E isso não ocorre por fragilidade da pessoa, mas é uma conseqüência natural do que ela está passando. As reações são variadas, uns podem engordar e outros emagrecer em demasia e sem motivo aparente. Pode haver diminuição da libido, isolamento social e reprodução da violência sofrida no ambiente doméstico. No caso dos homens, quando eles chegam a desistir ou perder o emprego há ainda um agravante. Como, culturalmente, o homem é tido como provedor da casa e, por um certo machismo, não deve demonstrar fraqueza, o assédio pode deixá-lo completamente desestruturado, levando ao suicídio.
A empresa, por sua vez, sofre os efeitos da diminuição da competitividade, redução da produtividade, com perda de lucratividade, perda de trabalhadores qualificados, aumento de doenças e acidentes, aumento do absenteísmo, perdas econômicas, por pagamento de indenizações e processos, e perda de imagem, entre outros. Por fim, perde o Estado que, além de perder o potencial de trabalhadores produtivos, ainda vê aumentarem os gastos da previdência.
Informe ENSP: O que fazer para evitar o assédio moral?
Margarida Barreto: Em primeiro lugar, é importante ter em mente que o assédio moral não começa como assédio. Ele sempre começa com uma situação de conflito não resolvido. E aí, acho importante diferenciar bem o conflito – algo positivo, que pode desencadear novas idéias e crescimento mútuo, que envolve tarefas claras, objetivos coletivos e comunicação sincera, honesta e respeitosa – do assédio moral – no qual imperam as tarefas confusas, as ordens ambíguas, o boicote e o individualismo, a falta de ética e a comunicação indireta, evasiva, difícil, autoritária e desrespeitosa.
O momento ideal de intervenção é durante o conflito, ou seja, antes que ele evolua para um caso de assédio moral. Por que está se prolongando? O que está interferindo? Se o conflito começa a virar um caso de assédio, é necessário fazer uma prevenção primária, que envolve, entre outras coisas, uma tomada de posição da empresa, informando que não vai tolerar a prática do assédio moral, a realização de campanhas de sensibilização antiviolência, a elaboração e distribuição de cartilhas ou outro material informativo, além do estímulo às atitudes respeitosas nas relações interpessoais, o que é bastante complicado, porque mexe com a política de gestão da empresa. Caso isso ainda não resolva, deve ser feita a chamada ‘prevenção secundária’, com criação de grupos de apoio e sensibilização, reconhecimento do problema, escolha de um mediador para negociar soluções e permitir o entendimento, planificação e reorganização do trabalho, visando prevenir e abolir o risco de perseguição psicológica, etc. Quando nada disso resolve, o jeito é administrar as conseqüências e, entre as providências possíveis, pesquisar as causas do assédio moral e sua relação com a organização do trabalho; verificar as falhas da organização de trabalho que impedem a ajuda mútua e a colaboração entre os trabalhadores; rever normas, códigos de conduta e processos avaliativos.
Informe ENSP: De um tempo para cá, esse tema começou a ser discutido mais profundamente na Fiocruz. Como é a questão do assédio moral nas empresas públicas?
Margarida Barreto: Não existe um local que não exista assédio moral. Ele ocorre em empresas privadas, empresas públicas, organizações não-governamentais, instituições filantrópicas, sindicatos e igrejas e em todo lugar onde há trabalhadores. O assédio nas empresas públicas está muito ligado às políticas de ascensão funcional e ao modelo de gestão. De certa forma, o que eu venho observando é que o processo tende a ser mais perverso e penoso do que nas empresas privadas, pois a pessoa suporta o assédio sempre com esperança de que, quando mudar o comando, as coisas mudem. Por outro lado, como a pessoa não pode ser mandada embora, ela, muita vezes, é colocada à disposição e começa a rodar por vários setores, sempre carregando um estigma que, muitas vezes, faz com que ela volte a ser assediada. Nós já vimos casos de assédio em empresa pública com duração de oito anos, enquanto na empresa privada o máximo foi de um ano e meio.
Entrevista com o deputado do PT de Santa Catarina, Mauro Passos
O Deputado Mauro Passos, em entrevista, fala sobre o inovador projeto de lei de sua autoria.
O tema assédio moral tem sido debatido constantemente pela sociedade, sendo pauta freqüente dos fóruns da União Européia e Organização Internacional do Trabalho – OIT. É um conceito novo nas relações de trabalho e bastante abrangente. As pessoas sujeitas a assédio moral são muito mais suscetíveis ao stress do que as que trabalham em ambiente adequado em que sejam respeitadas.
As causas deste assédio estão relacionadas aos problemas de organização do trabalho, falta de informação e ausência de política de pessoal adequada que respeite o indivíduo dentro da instituição ou empresa. “É necessário combater o assédio moral que tem conseqüências devastadoras para a saúde física e psíquica do trabalhador, afeta a sua vida familiar, social e profissional”, comenta o deputado federal Mauro Passos (PT/SC), que nesta terça-feira, dia 28, protocolou projeto de lei na Câmara dos Deputados que proíbe o assédio moral nas relações de trabalho.
Este é um projeto inovador na legislação que extrapola a questão trabalhista e parte para os direitos básicos de todo o cidadão. “O assédio moral não é só um crime, mas um ilícito trabalhista que pode gerar o direito à indenização”, explica Passos. O parlamentar entende que as empresas são responsáveis pelo ambiente de trabalho, que deve ser saudável. É o empregador que determina a política de pessoal e que decide sobre a qualidade das relações dentro de seu estabelecimento. “Deve, portanto, adotar ações educativas para que o ambiente seja efetivamente livre de assédio moral. Caso não o faça, o empregador é responsável pelo assédio moral praticado”, comenta.
A proposta prevê pena também para o empregado que pratica o assédio, apesar de o empregador ter adotado as medidas cabíveis para evitar o problema. “A insubordinação e indisciplina, neste caso, poderá levar à demissão”, explica o deputado. O principal aspecto do assédio moral é que tem como objeto ou efeito a degradação das relações de trabalho. A sua proibição e a sanção, caso seja praticado, visam a melhoria das relações trabalhistas, trazendo dignidade e respeito à execução do contrato de trabalho.
Esta proposta do deputado catarinense foi inspirada em lei francesa, sofrendo alterações que se adequassem ao ordenamento jurídico brasileiro. “O prejuízo causado pelo assédio moral para o mundo do trabalho e para a sociedade em geral pode ser evitado mediante a adoção de medidas educativas. É exatamente o que pretendemos ao conceituar o assédio como ilícito trabalhista. Talvez aqueles que o pratiquem percebam a gravidade de seus atos e o alcance negativo na vida do trabalhador”, conclui Mauro Passos.