A Fome

A FOME

“Uma velha que trazia a fome nos
ombros e nos olhos e que trazia
a seca no ventre e no seio.”
J. Cardozo.

Se fome tem nome,
o nome da fome,
é nordeste.

Corações áridos,
destinos inválidos,
cáusticos destinos,
criados ao sol a pino.
O sertão e agreste definham, agonizam.

Se fome tem nome,
o nome perene é nordeste.
Fome consome, sem pressa,
com preces, fome entristece.
O nome da fome: nordeste.

Norte, sul, leste, oeste,
cardeais da sorte,
pontos na vida ou morte,
chegam à Bangladesh,
São Paulo, Rio ou Marrakesh.

Será o nome da fome,
só e só nordeste?
E a negritude do Harlen,
utopia de Moscou ou Budapeste?
E os sopros do liberto Timor Leste?

Espremendo mais do que o infinito, choveu.
No chão aflito, um ressequido sertão sobreviveu.
Gotas de suor e sangue,
poucas gotas d’água,
quase tudo se perdeu.

Há esperança e utopia,
brincando na etérea alegria,
apesar do pão difícil de cada dia.

O trigo pede perdão.
Tropeça na mão das secas,
na ausência do pão,
milagre concreto do grão.
Mais um cabra da peste,
segura firme
toda esperança na mão.

 

J.A

Mãos dadas

Mãos Dadas

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente.

 

Carlos Drummond de Andrade

Violência: pare e pense!

Violência: pare e pense!

Quando demitiram os negros,
eu não era negro e não fiz nada.

Quando demitiram os adoecidos e acidentados do trabalho

eu não era adoecido do trabalho e porque iria defende-los?

Quando demitiram as mulheres,
eu não era mulher. Ia fazer o que?

Quando demitiram os mais velhos,
eu não era velho e nada fiz nada.

Quando vieram contra meus colegas de trabalho,

o assunto não me dizia respeito e nada fiz. Calado fiquei.

Finalmente, quando vieram contra mim…
Ninguém me defendeu!

Aquele que nunca sofreu qualquer tipo de violência
sempre pensará que o sofrimento do outro
não é grande coisa, que é exagero.

Alguns até acham que a violência moral, as discriminações e o racismo não existem!
Que não existe discriminação contra os negros, contra as mulheres, os doentes, os acidentados do trabalho, os desempregados, os favelados, os sem teto, os sem terra…

E assim seguimos e fazemos todos os dias:
desprezamos ou diminuímos
o sofrimento alheio.

Não dando atenção à dor do outro nos condenamos a sofrer em silêncio

a nossa própria dor.
O nosso silêncio
favorece os opressores e nos faz cúmplice.
Quem, por medo, se cala,
De alguma forma, concorda com o tirano.
E tudo parece muito normal,

tão normal quanto sofrido e solitário. E as injustiças são banalizadas.

Quem sabe, aquelas frases ditas anteriormente poderiam ser reescritas assim?

Quando vieram contra os negros,
eu nada fiz.
Pois em meu silencio, eu também era contra os negros.
Quando vieram contra os adoecidos e acidentados do trabalho

eu não era adoecido e fiquei em silencio.
Na verdade, eu era contra aqueles que adoeciam, pois eu achava que eles fingiam.
Quando vieram contra as mulheres,
eu não era mulher e permaneci em silencio. Eu era contra as mulheres.
Quando vieram contra os desempregados,
eu não era desempregado e não fiz nada e,

calado, também eu era contra os desempregados.

Quando vieram contra os analfabetos, os favelados, os sem teto e os sem terra, não fiz nada e, em silencio, também eu era contra os favelados, os sem teto e sem terra.

Quando vieram contra mim, ninguém me defendeu, usaram o silêncio e a indiferença para apoiar meus inimigos.

Talvez uma lição a ser aprendida:
o que nos faz iguais é que somos, todos,
diferentes uns dos outros.

Então, reflitam: de onde vem esse medo de ser diferente?
Por que permanecemos em silêncio? Porque nos submetemos? Porque nos calamos ante as injustiças?
Por que aceitamos os desmandos e abuso de poder?
Por que nos resignamos a viver fechados e solitários e tratamos o outro com frieza e indiferença?
Por que ignoramos a positividade da sociabilidade?
Porque abrimos mão de nossa liberdade e nos sujeitamos ao tirano?

Por que nos identificamos e até acreditamos nas tagarelices televisivas?

Por que tanto medo?
Por que? por que?
Pensem nisso.

(Inspirado no filme: “Olhos azuis” de Jane Elliott)

 

M. Barreto