Uma tragédia pessoal levou a ginecologista Margarida Maria Silveira Barreto a buscar novos rumos em sua vida e em seu trabalho. Pouco tempo depois, a saúde do trabalhador ganhava uma apaixonada e dedicada pesquisadora, cujo interesse se voltou para o, até então pouquíssimo discutido no país, tema do ‘assédio moral’. Hoje, Margarida integra o grupo de profissionais responsável pelo site ‘Assédio moral no trabalho. Chega de humilhação!’, e viaja por todo o país divulgando e incentivando discussões sobre a questão que afeta um sem número de trabalhadores. “Só no site, nós recebemos cerca de 300 denúncias por dia’, disse Margarida, que é autora do livro ‘Violência, saúde, trabalho – uma jornada de humilhações’ (Educ, 2000 e 2006), em recente palestra na ENSP.
ENSP/Fiocruz
Informe ENSP: O que é assédio moral? Ele pode ser considerado uma doença do trabalho?
Margarida Barreto: O assédio moral pode ser definido como a exposição de trabalhadores a situações vexatórias, constrangedoras e humilhantes durante o exercício de sua função, de forma repetitiva e prolongada ao longo da jornada de trabalho. É uma atitude desumana, violenta e sem ética nas relações de trabalho, que afeta a dignidade, a identidade e viola os direitos fundamentais dos indivíduos. No Brasil, o termo ‘assédio moral’ veio na esteira do ‘assédio sexual’, até porque o verbo assediar tem, segundo o dicionário Aurélio, o significado bem específico de “colocar o outro num cerco, não dar trégua e humilhar até quebrar a sua força, quebrar sua vontade”. Outras denominações também usadas são ‘assédio psicológico’, ‘tortura psicológica’ e, em alguns casos, ‘violência moral’.
O assédio moral não é uma doença, mas um risco não visível no ambiente de trabalho. Quando se identifica o assédio moral como doença, a tendência é de culpabilizar o trabalhador e de colocar a discussão no marco da biologia. Isso leva a um reducionismo muito grande, pois isola o problema e retira da análise o contexto social, as formações socioeconômicas e o processo histórico. Deixa de se considerar a existência das pessoas em sociedade e o indivíduo em sua relação com o outro, num cenário específico, que é o mundo do trabalho com a lógica do lucro.
É muito importante que as pessoas entendam, e essa é a nossa batalha. Nós já levamos essa discussão para profissionais da Saúde, para as universidades e para os sindicatos. De cinco anos para cá, no entanto, nosso foco tem sido a área do Direito – juízes, advogados, promotores, OAB, etc. -, pois percebemos que havia uma certa incompreensão no sentido do julgamento, e o problema acabava sendo atribuído à personalidade e à sensibilidade do assediado, ficando descartada a questão do ambiente de trabalho.
Informe ENSP: O que leva ao assédio moral?
Margarida Barreto: Para se entender a questão do assédio moral, é importante, antes de tudo, compreender as mudanças radicais que o mundo do trabalho sofreu nesses últimos 20 anos. Entre outras coisas, podemos falar da questão da ‘reestruturação’ intensiva das empresas, que se caracteriza, principalmente, pela demissão em grande escala. O resultado é que aqueles que ficam acabam sobrecarregados, realizando tarefas que corresponderiam a dois ou três funcionários. Outro conceito muito usado é o da ‘flexibilização’ que, na verdade, acaba sendo a flexibilização dos direitos, do tempo e da saúde do trabalhador. O trabalhador, cuja jornada de trabalho era de oito horas, passa a estar 24 horas por dia à disposição da empresa. Seu tempo passa a ser o tempo do poder e da produção. Tem ainda a questão da ‘empregabilidade’, na qual o trabalhador é responsabilizado pela sua própria atualização, a fim de se tornar empregável, isto é, um indivíduo pronto para atender ao chamado do mercado de trabalho. O trabalhador deixa de ser um ‘trabalhador’ para virar um ‘colaborador’, ou seja, nós nos tornamos colaboradores da nossa própria exploração. Tudo isso afeta diretamente a forma como as pessoas se relacionam no ambiente de trabalho e acabam formando um terreno propício para o assédio moral.
Informe ENSP: Qual o papel das empresas e organizações nos casos de assédio que ocorrem com seus funcionários?
Margarida Barreto: O assédio moral é um processo que se caracteriza pelo encadeamento de propósitos e de atuações hostis que, quando tomados separadamente, podem parecer insignificantes, mas cujas repetições constantes têm efeitos bastante nocivos. Ele desestabiliza emocionalmente a vítima do assédio, destrói o coletivo e a rede de comunicação no ambiente de trabalho. O assédio moral é um indicador da existência de violência instituída e institucionalizada e da imposição da lógica organizacional. Quando escutamos as vítimas de assédio, fica muito claro que há dois fatores fundamentais de causalidade dessa prática: a forma de organizar o trabalho e a cultura organizacional que banaliza a violência em nome da produtividade. No Brasil, ainda é normal uma postura de fuga das empresas. Elas raramente assumem que possa haver um caso de assédio moral no seu âmbito, e isso acaba fortalecendo a idéia, que a Justiça cada vez mais manifesta, de responsabilidade solidária da empresa nos casos de assédio moral.
Informe ENSP: Quais as principais características do assédio moral?
Margarida Barreto: Em quase todo caso de assédio moral, é possível identificar cinco momentos muito distintos, como se fosse uma raiz que se repete em todos os lugares. O primeiro passo do assediador é impedir a vítima de se exprimir. Então, nada do que ela diz tem valor ou deve ser ouvido. Daí, começa a fase do isolamento, que ela tenta superar aumentando o seu ritmo de trabalho e sua produção. Como isso não resolve, ela entra num caminho de auto-isolamento. Na continuidade do processo, o objetivo passa a ser desconsiderá-la junto dos seus colegas, desmerecendo seu trabalho, e desacreditá-la no seu ambiente de trabalho até, finalmente, comprometer a sua saúde. O interessante é que, para isso, utilizam-se estratégias muito sutis e até muito sedutoras.
Informe ENSP: No que consiste o assédio moral? Como se dá o processo? Que táticas são utilizadas pelo assediador?
Margarida Barreto: Eu aponto as táticas de relacionamento, de isolamento, de ataque e as ações punitivas de cunho pedagógico e disciplinar. Na questão do relacionamento, visando quebrar as relações existentes, há um incentivo à competitividade e à excelência, o que acaba fortalecendo o individualismo. No isolamento, a impressão que se tem é que o assediado tem uma doença contagiosa, ninguém quer ser visto com ele. As pessoas são colocadas na ‘geladeira’, isto é, num lugar onde não valem nada, são ‘queimadas’, por meio de fofoca, ou, simplesmente, ‘esquecidas’, uma tática muito usada com os que retornam de licença médica. Os ataques, por sua vez, são sempre velados, nada é muito explícito. O assediador fala mal com terceiros sobre o trabalho da vítima, ou sobre os riscos que ela corre de perder o emprego, deixando que ela ‘ouça a conversa’, por exemplo. Mas há ainda as ações punitivas, mais comuns no Norte e no Nordeste do país, mas que também ocorrem em outras regiões. Essas práticas de abuso de poder têm, claramente, o objetivo de sujeitar corpos e mentes não só do assediado, mas também dos demais. Quando presenciam as humilhações impostas ao assediado, as pessoas tendem a trabalhar mais e a se calar por medo de serem os próximos a sofrer abusos, perder o emprego ou ser identificado com a pessoa que está mal no ambiente de trabalho.
Quanto às ações, elas são as mais variadas possíveis – gritos, gestos grosseiros e obscenos, comportamento hostil, intolerância, perseguição sistemática e até violência física – cujo objetivo é desestabilizar emocionalmente a vítima, destratá-la, ridicularizá-la publicamente. As ameaças de desemprego, por sua vez, levam muitos a tolerarem o assédio, as acusações e a atribuição de apelidos depreciativos ou constrangedores, prática muitas vezes justificada pela imagem que o brasileiro tem de ser brincalhão. A insinuação de roubo é a facada final que se pode dar num assediado. Uma acusação injustificada é capaz de desestruturar qualquer pessoa.
Informe ENSP: Qual o perfil de assediadores e assediados?
Margarida Barreto: As pesquisam mostram que cerca de 90% dos assediadores são superiores hierarquicamente aos assediados, mas há casos em que o assédio é praticado pelo conjunto dos colegas e, até mesmo, por um subordinado. Quanto ao sexo, há homens e mulheres, dependendo mais do cargo que ocupam. Em mais de 10% dos casos com mulheres, o processo parte de um caso de assédio sexual. No caso dos homens, o assédio sexual se torna bastante delicado quando o assediador também é homem, pois isso quebra a reação da vítima.
Quanto aos assediados, eles são justamente aqueles que, de alguma forma, quebram a harmonia, porque questionam, sugerem e apontam problemas. São, geralmente, pessoas que buscam soluções para o coletivo, que se preocupam com os demais, ou seja, são os questionadores e, pasmem, os solidários. Como ele reclama, ele acaba sendo visto como aquele que vive fazendo drama ou criando casos, mas isso não é verdade. Outro grupo importante é dos portadores de doenças causadas pelo próprio trabalho. De forma geral, os mais velhos e as mulheres, principalmente as negras.
Informe ENSP: Quais os custos, quais as conseqüências do assédio moral?
Margarida Barreto: Para o trabalhador, o assédio representa um grande sofrimento, que começa com o medo, a ansiedade, a vergonha e o sentimento de culpa, entre outros. Como o sofrimento é a ante-sala do adoecimento, as coisas vão piorando, o estresse aumenta e isso pode levar inclusive a vícios diversos e ao suicídio. Quando começa o processo de sofrimento, o trabalhador fica imerso numa zona cinzenta em que ele não entende o que está havendo. É como se ele entrasse num túnel de emoções tristes, que acabam criando uma rede imaginativa que leva à repetitividade do pensamento. Ele só consegue pensar nisso. O sofrimento poda a sua criatividade e pode até afetar sua memória. E isso não ocorre por fragilidade da pessoa, mas é uma conseqüência natural do que ela está passando. As reações são variadas, uns podem engordar e outros emagrecer em demasia e sem motivo aparente. Pode haver diminuição da libido, isolamento social e reprodução da violência sofrida no ambiente doméstico. No caso dos homens, quando eles chegam a desistir ou perder o emprego há ainda um agravante. Como, culturalmente, o homem é tido como provedor da casa e, por um certo machismo, não deve demonstrar fraqueza, o assédio pode deixá-lo completamente desestruturado, levando ao suicídio.
A empresa, por sua vez, sofre os efeitos da diminuição da competitividade, redução da produtividade, com perda de lucratividade, perda de trabalhadores qualificados, aumento de doenças e acidentes, aumento do absenteísmo, perdas econômicas, por pagamento de indenizações e processos, e perda de imagem, entre outros. Por fim, perde o Estado que, além de perder o potencial de trabalhadores produtivos, ainda vê aumentarem os gastos da previdência.
Informe ENSP: O que fazer para evitar o assédio moral?
Margarida Barreto: Em primeiro lugar, é importante ter em mente que o assédio moral não começa como assédio. Ele sempre começa com uma situação de conflito não resolvido. E aí, acho importante diferenciar bem o conflito – algo positivo, que pode desencadear novas idéias e crescimento mútuo, que envolve tarefas claras, objetivos coletivos e comunicação sincera, honesta e respeitosa – do assédio moral – no qual imperam as tarefas confusas, as ordens ambíguas, o boicote e o individualismo, a falta de ética e a comunicação indireta, evasiva, difícil, autoritária e desrespeitosa.
O momento ideal de intervenção é durante o conflito, ou seja, antes que ele evolua para um caso de assédio moral. Por que está se prolongando? O que está interferindo? Se o conflito começa a virar um caso de assédio, é necessário fazer uma prevenção primária, que envolve, entre outras coisas, uma tomada de posição da empresa, informando que não vai tolerar a prática do assédio moral, a realização de campanhas de sensibilização antiviolência, a elaboração e distribuição de cartilhas ou outro material informativo, além do estímulo às atitudes respeitosas nas relações interpessoais, o que é bastante complicado, porque mexe com a política de gestão da empresa. Caso isso ainda não resolva, deve ser feita a chamada ‘prevenção secundária’, com criação de grupos de apoio e sensibilização, reconhecimento do problema, escolha de um mediador para negociar soluções e permitir o entendimento, planificação e reorganização do trabalho, visando prevenir e abolir o risco de perseguição psicológica, etc. Quando nada disso resolve, o jeito é administrar as conseqüências e, entre as providências possíveis, pesquisar as causas do assédio moral e sua relação com a organização do trabalho; verificar as falhas da organização de trabalho que impedem a ajuda mútua e a colaboração entre os trabalhadores; rever normas, códigos de conduta e processos avaliativos.
Informe ENSP: De um tempo para cá, esse tema começou a ser discutido mais profundamente na Fiocruz. Como é a questão do assédio moral nas empresas públicas?
Margarida Barreto: Não existe um local que não exista assédio moral. Ele ocorre em empresas privadas, empresas públicas, organizações não-governamentais, instituições filantrópicas, sindicatos e igrejas e em todo lugar onde há trabalhadores. O assédio nas empresas públicas está muito ligado às políticas de ascensão funcional e ao modelo de gestão. De certa forma, o que eu venho observando é que o processo tende a ser mais perverso e penoso do que nas empresas privadas, pois a pessoa suporta o assédio sempre com esperança de que, quando mudar o comando, as coisas mudem. Por outro lado, como a pessoa não pode ser mandada embora, ela, muita vezes, é colocada à disposição e começa a rodar por vários setores, sempre carregando um estigma que, muitas vezes, faz com que ela volte a ser assediada. Nós já vimos casos de assédio em empresa pública com duração de oito anos, enquanto na empresa privada o máximo foi de um ano e meio.