Como poderiam os oprimidos…

Como poderiam os oprimidos…

Como poderiam os oprimidos dar início à violência, se eles são o resultado de uma violência?
Como poderiam ser os promotores de algo que, ao instaurar-se objetivamente, os constitui?
Não haveria oprimidos, se não houvesse uma relação de violência que os conforma como violentados, numa situação subjetiva de opressão.
Inauguram a violência os que oprimem, os que exploram, os que não se reconhecem nos outros; não os oprimidos, os explorados, os que não são reconhecidos pelos que os oprimem como outro.
Inauguram o desamor, não os desamados, mas os que não amam, porque apenas se amam.

Os que inauguram o temor não são os débeis, que a eles são submetidos, mas os violentos que, com seu poder, criam a situação concreta em que se geram os “demitidos da vida”, os esfarrapados do mundo.
Quem inaugura a tirania não são os tiranizados, mas os tiranos.
Quem inaugura o ódio não são os odiados, mas os que primeiro odiaram.
Quem inaugura a negação dos homens não são os que tiveram a sua humanidade negada, negando também a sua.
Quem inaugura a força não são os que se tornaram fracos sob a robustez dos fortes, mas os fortes que os debilitaram.”

 

Do livro: Convite à leitura de Paulo Freire – 1989

Os ombros suportam o mundo

Os ombros suportam o mundo

“Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação”.

 

Carlos Drummond de Andrade

Cidade das mulheres

Cidade das mulheres

Cidade das mulheres.
Cidade das belezas…
Tão bela esta mulher que nasce, cresce…
Se aflora na busca
das diversas formas de amar:
Amar com gestos,
Amar com palavras,
Amar com atos,
Amar na coragem, na valentia de
se encontrar na grandeza de
reproduzir vida, respeito e dignidade
na cidade de braços e abraços tão abertos.
Cidade que encanta por sua gente,
por seus rios e praças,
ah…bendita Redenção!
com seus gritos de liberdade
do sul para os nortes…
de todas as raças,
de todas as crenças.
Cidade que planta igualdades,
Cidade que canta conquistas,
Cidade dos caminhos abertos,
Cidade das mulheres…
Cidade de Portos tão alegres
Cidade que faz renascer
A vontade de continuar … a luta!
Bendita seja, a cidade de todas as Mulheres

 

Lucia Reali Lemos

Brasil: que fazer?

Brasil: que fazer?

Você que mora no alheio,
que anda de lotação,
que trabalha o dia inteiro
pra enriquecer o patrão

-que ainda espera desse mundo de injustiça e exploração?

Você que paga aluguel,
que pagará toda a vida
a casa que não é sua,
que pode a qualquer momento
ser posto no olho da rua

-que pode esperar da vida que deveria ser sua?
Que pode esperar da vida quem a compra à prestação?

Quem não tem outra saída:
-ser escravo ou ser ladrão?
Que pode esperar da vida
que a recebe vendida
por seu pai ao seu patrão?

Pro patrão você trabalha
dia e noite sem parar.
Você queima a sua vida
pra ele a vida gozar.

Você gasta a sua vida
pra dele se prolongar.
Você dá duro, padece,
você se esgota, adoece,
e quando, enfim, envelhece
o que é ruim vai piorar.

Só então você percebe
que tempo você perdeu.
Você vê que sua vida
foi dura mas não valeu.

Você passou a seu filho
o mundo que recebeu:
O mundo injusto e sem brilho
que, de fato, nem foi seu,
que não será do seu filho
se nele não se acendeu
o sentimento profundo
que traz o homem pra luta

-luta que fará o mundo
ser dele, ser meu, ser teu.

Por isso meu companheiro,
que trabalha o dia inteiro
pra enriquecer o patrão,
Te aponto um novo caminho
para tua salvação,
a salvação de teu filho
e o filho do teu irmão:

Te aponto o caminho novo
da nossa revolução.
Então verás que tua vida
ganha nova dimensão,
que em vez de triste e perdida
terá força e direção.

E cada homem da rua
Verás como teu irmão
que, sabendo ou não sabendo,
procura a libertação.
Sentirás que o mar que bate
na praia não bate em vão;
Que a flor que cresce no Meyer
não cresce no Meyer em vão;

Que o passarinho que canta
não canta pra teu patrão;
Que a grama verde que cresce
empurra a revolução.

O mundo ganhou sentido,
teu braço ganhou função.
A revolução floresce
na minha, na tua mão,
que nada há mais que a detenha

-nem polícia nem bloqueio
nem bomba nem Lacerdão

Que ela assobia no vento
e marcha na multidão,
ilumina o firmamento,
gira na constelação
porque já foi deflagrada
no meu, no teu coração.

 

Publicado na Revista dos Sem Terra; edição especial – setembro de 2003