Cresce o número de denúncias de assédio moral e sexual nas universidades federais

De 2014 a 2018, a Universidade Federal de Santa Maria registrou aumento de 342% nos casos de assédio moral, conforme dados fornecidos via Lei de Acesso à Informação.

Esta reportagem tem o objetivo de falar sobre um problema de saúde mental e psicológica que pode afetar qualquer um de nós. Sabemos que o clima de tensão sobre as universidades — devido as ameaças de inserção da polícia nos no campus e as denúncias de cunho político — pode gerar uma polarização de opiniões que não é benéfica, portanto, queremos deixar claro que não estamos assumindo uma posição de acusação. Em nenhum momento queremos colocar as universidades federais como culpadas ou responsáveis pelas atitudes de pessoas ligadas a elas, seja como como docentes ou alunos. Não cabe a investigação o julgamento, apenas o levantamento de dados. Nosso intuito é promover a reflexão sobre situações que ocorrem em ambiente acadêmico e prejudicam física e psicologicamente suas vítimas. Não se pode afirmar, com clareza, se houve aumento nos casos de assédio, ou reflete apenas o aumento no número de denúncias.

Para a realização dessa reportagem, foram selecionadas cinco universidades federais do Rio Grande do Sul : Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Universidade Federal de Rio Grande (FURG) e Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que juntas, somam mais de 86 mil alunos.

Os dados foram fornecidos pelas universidades via Lei de Acesso à Informação, mas, como observado por algumas ouvidorias, é recente esse cuidado de catalogar e separar as denúncias. As universidades questionadas alegaram falta de um acervo organizado, e como no caso da FURG, o prazo de resposta foi prorrogado, mas não recebemos outra resposta. Até o fechamento dessa matéria, não recebemos resposta também da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, por isso enviamos uma reclamação ao Ministério da Educação. O MEC não se posicionou a respeito.

Assédio

Casos de assédio não são isolados. De 2014 a 2018, a Universidade Federal de Santa Maria registrou um aumento de 342% no número de denúncias de assédio moral, passando de 19 para 84 registros. A Universidade conta com mais de 28 mil alunos e em comparação com outras instituições os números continuam pequenos.

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Assédio moral não é um termo novo, atualmente tem se popularizado. Ele classifica um tipo de violência em que uma pessoa humilhada, ofendida ou atacada na dignidade por outra. O assédio em ambientes acadêmicos consiste na exposição recorrente a situações degradantes. Normalmente, as vítimas são estudantes, mas também há casos em que são justamente os alunos os assediadores. Nesse segundo modelo, eles praticam a agressão contra outros alunos, professores ou funcionários da universidade. O assédio moral não está tipificado na legislação brasileira, mas caso seja comprovado o abuso psicológico, o agressor passa a responder por crime de danos morais.

Já o assédio sexual, é definido no Artigo 126 do Código Penal como o ato de “constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente de sua condição superior hierárquico”. Esse tipo de assédio engloba uma série de comportamentos, que vão desde o contato físico até um comentário com conotação sexual. Nesses casos, as vítimas são majoritariamente do gênero feminino.

Carla* é uma estudante de ciências contábeis de 23 anos, mas aos 21 a trajetória acadêmica quase foi interrompida. Não foram os problemas financeiros, nem mesmo a distância entre a cidade natal e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul que a fizeram questionar a continuidade dos estudos. No início do segundo semestre de 2017, foi a atitude de um professor que transformou o estudo em tormento.

“Eu nem tenho certeza de como começou. Um dia ele só disse que eu iria reprovar porque era burra demais para aprender o conteúdo”, conta a estudante que, mesmo agora, não enxerga um motivo no relacionamento superficial de aluno-professor que pudesse ter desencadeado tal atitude.

A partir desse dia, Carla viveu sob o estresse constante de ser ridicularizada pelo professor em sala de aula. O incômodo evoluiu para crises de ansiedade e ela passou a fazer uso de medicação, ainda em 2017.

Na Universidade Federal de Pelotas, com cerca de nove mil alunos, os dados fornecidos pela ouvidoria, mostram que de 2014 para 2018 as denúncias têm crescido. Em 2019, até maio, foram registradas 37 denúncias de assédio moral, sendo que 29 delas foram realizadas por uma mesma turma, acerca de um assunto específico.

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Sobre os dados da ouvidoria da Universidade Federal do Pampa, que atualmente tem em torno de oito mil alunos, os números são pequenos, mas não se sabe se outros casos continuam a não ser denunciados.

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Nos últimos anos, as universidade têm se mostrado abertas para receber as denúncias e investigar os comportamentos dos docentes e funcionários. Projetos de apoio aos alunos, de orientação e o sigilo das ouvidorias institucionais favorecem que situações que antes passariam despercebidas sejam trazidas à luz da justiça. Casos de assédio requerem investigação e acompanhamento, muitas vezes demorados, e as vítimas costumam ficar receosas de represálias. Por isso, o posicionamento das universidades facilita a abertura para falar sobre problemas como esse.

“Antes, as pessoas não pensavam em denunciar um professor que fosse abusivo na sala de aula. Era simplesmente o jeito dele. Agora os alunos tem certa noção do que o professor pode e o que é errado”, comenta Carla.

Como ocorre

Segundo pesquisadores da área, como o professor José Roberto Heloani , da UNICAMP, que há mais de 20 anos estuda o assédio moral nos ambientes de trabalho e acadêmico, o local onde mais aumenta a incidência de agressões do tipo é dentro da academia. Influenciado pelo modelo de gestão atual das universidades, em que a produtividade é o único ponto positivo esperado de alunos e professores, promulgado pelo sistema hierárquico rígido que não permite uma conversa horizontal entre diferentes setores, cria-se um ambiente de cultura para o assédio moral.

Muitas vezes, o agressor apresenta traços de narcisismo e baixa autoestima, assim como tendência a comportamento paranóico. Ele projeta nos assediados as falhas que enxerga em si mesmo e não consegue corrigir. Por sua vez, as vítimas não costumam ser pessoas frágeis, mas transparentes e com personalidade forte que questionam e batem de frente com as opiniões do assediador. Cria-se ali o terreno para uma disputa silenciosa que se vale de ameaças — sejam elas morais ou físicas — para tentar diminuir o alvo. Em ambientes acadêmicos, quando o agressor moral é um docente, é comum que o assédio se torne coletivo, pois costuma ocorrer na sala de aula, na frente de outros alunos, que dificilmente interferem.

Como no caso ocorrido na Universidade Federal de Rio Grande Campus Santo Antônio da Patrulha (FURG-SAP) relatado por Marcos*, aluno envolvido com a ocupação da universidade. Na época, uma professora, com opinião contrária ao grupo de alunos que ocupavam o campus, incitava o restante da turma contra Marcos e alguns colegas. Um deles, nordestino, sofria ainda com piadas e perseguições de caráter xenofóbico.

“A perseguição aconteceu através de represálias na sala, a professora induzia a turma a ficar contra nós. A principal forma dela nos perseguir foi aplicando uma prova incoerente com a disciplina. Ela colocou todos os alunos para fazer esse exame e só passou aqueles com quem ela não tinha essa rixa”, lembra Marcos. Mesmo com as provas físicas da perseguição, ainda houve resistência na hora de denunciar. “Principalmente por parte dos outros alunos que sofreram perseguições menores. No início, falaram que iriam denunciar essas atitudes da professora, mas com o passar do tempo, acabaram desistindo”, conclui o aluno.

Segundo ele, a ocupação ocorreu no segundo semestre de 2016, e no primeiro semestre de 2017 entraram com um processo no ministério público, mas apenas no final de 2018 uma sindicância foi instaurada para ouvir as partes. Como a demora é benéfica para os assediadores, geralmente as vítimas acabam desmotivadas e o caso cai no esquecimento.

O número de casos de assédio sexual envolvendo professores, funcionários e até mesmo colegas de faculdade, também tem aumentado ano a ano. Mesmo que o crescimento nas denúncias seja um fator benéfico e importante, a frequência dos casos preocupa até mesmo professores. Regina* é professora no curso de Psicologia da Universidade Federal de Pelotas e já ouviu dos alunos, em caráter de conversa, relatos que também não chegam à ouvidoria das instituições.

“Uma vez, uma aluna me disse que não tinha coragem de denunciar a situação como assédio sexual, pois as pessoas iriam minimizar o que ela tinha sentido”. A aluna em questão reclamava de ser constantemente abraçada pelo professor, mas não levava adiante a queixa por medo da opinião, até mesmo dos colegas. “Eles ainda têm medo de reprimendas, mas ninguém pode ser obrigado a conviver com essa situação”, reitera a professora. “É um absurdo um professor oferecer o projeto em troca de sexo.”

Traumas na juventude

Outro ponto importante mencionado pela professora é a idade em que os assédios costumam ocorrer.

“A maioria dos alunos está saindo da adolescência e entrando na vida adulta quando chega na faculdade. Por parecerem adultos, muitas vezes nós mesmos, os professores, nos esquecemos de que ainda estão em uma fase de descobertas e aprendizado.”

Segundo a professora, os abusos e traumas nessa fase da vida podem ser tão prejudiciais quanto os sofridos na infância. A vergonha e a culpa desencadeiam bloqueios e geram dificuldade de se relacionar até mesmo com a própria sexualidade, além de mudanças de temperamento, dificuldade de concentração e aprendizagem e, em casos mais graves, depressão e ansiedade.

“O trauma se torna uma vergonha, um segredo que não pode ser revelado. A vítima se sente inferior por ter passado por aquela situação. E é nesses momentos que ela desiste de denunciar”, explica Regina.

Segundo ela, mesmo que cada vez haja mais informações e apoio às vítimas, ainda existem muitos casos que não vem à tona. A ideia de ser culpado pelo ocorrido faz com que muitos jovens, principalmente nesse início da vida adulta, prefiram esconder o que seria uma “falha”.

Assédios e denúncias

Uma das intenções da reportagem era fazer um recorte de gênero que mostrasse as incidências com essa separação, mas uma das possibilidades da denúncia é ser feita anonimamente. Por esse motivo, as ouvidorias não fazem distinção de gênero nos registros. Para tentar atender essa necessidade, foi realizada uma pesquisa de questionário.

Utilizando a rede social Twitter, foi lançada a ideia geral da reportagem com um pedido para alunos de universidades federais do Rio Grande do Sul entrarem em contato via mensagem. Depois do primeiro contato, responderam a um questionário de questões objetivas sobre assédio moral e sexual no ambiente acadêmico. Como era anunciado o tema da pesquisa, os alunos que se dispuseram a participar já relatavam ter ocorrido um tipo de agressão. Das 47 respostas que obtivemos, 28 foram do gênero feminino e 19 do gênero masculino.

Entre o gênero feminino, houve 15 relatos de assédios morais e nove de assédios sexuais. Já no gênero masculino, oito casos de assédios morais e apenas um de assédio sexual.

Os participantes apresentaram idades entre 19 e 32 anos e são alunos das Universidade Federal do Rio Grande, da Universidade Federal de Pelotas e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Gênero e assédio
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Desses casos, apenas uma pequena parte chega à ouvidoria ou outros órgãos de denúncia, apesar da maior liberdade e facilidade de poder denunciar. O medo de reprimendas e pressão ainda é maior do que a informação.

Do gênero feminino, houve seis casos de denúncia para assédio moral e três de assédio sexual. Do gênero masculino, quatro denúncias de assédio moral e nenhuma de assédio sexual.

Copy : Gênero e assédio
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Segundo dados do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul, até 68% das estudantes do gênero feminino sofrem assédio no ambiente acadêmico. Com estudantes do gênero masculino, o número fica em torno de 17%, mas acredita-se que seja maior, já que a denúncia de assédio muitas vezes é barrada pelo preconceito que possa sofrer.

“Além da represália, os homens estão acostumados com essa ideia machista de que não podem ser fracos. As denúncias são 17%, mas as ameaças que não chegam até a ouvidoria calculamos que seja em torno de 40%”, comenta a professora de psicologia.


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O que se observa, no panorama geral, é o aumento das denúncias, concomitante ou não, ao aumento do número de assédios. Isso se deve, em parte, à distribuição de informações e redes de apoio e proteção aos estudantes, que buscam fornecer um ambiente acolhedor, com suporte e maior abertura para falar sobre.

Todos os anos, casos de denúncias de assédio são mostrados na mídia e as vítimas se sentem mais dispostas a se pronunciar. Como nos casos das universidades, quando questionadas sobre a validade de se debater as práticas abusivas, a resposta é sempre afirmativa, como comenta a estudante Carla, mencionada no início da matéria.

“’Pra mim, toda informação é bem-vinda. Se as universidades se preocupam em falar sobre isso, ótimo. Mas nós mesmas precisamos falar. E as pessoas de fora precisam nos ouvir e entender que não é brincadeira, não é paranoia. Essas coisas acontecem com gente que tu nem imagina.”

*Os nomes foram trocados para preservar a identidade dos entrevistados. Por Bruna Lago e Vanessa Lourenço

[Matéria publicada em : [https://medium.com/betaredacao]
>https://medium.com/betaredacao/cresce-o-n%C3%BAmero-de-den%C3%BAncias-de-ass%C3%A9dio-moral-e-sexual-nas-universidades-federais-d9d7ed5d57da]

Cresce o número de denúncias de assédio moral e sexual nas universidades federais

De 2014 a 2018, a Universidade Federal de Santa Maria registrou aumento de 342% nos casos de assédio moral, conforme dados fornecidos via Lei de Acesso à Informação.

Esta reportagem tem o objetivo de falar sobre um problema de saúde mental e psicológica que pode afetar qualquer um de nós. Sabemos que o clima de tensão sobre as universidades — devido as ameaças de inserção da polícia nos no campus e as denúncias de cunho político — pode gerar uma polarização de opiniões que não é benéfica, portanto, queremos deixar claro que não estamos assumindo uma posição de acusação. Em nenhum momento queremos colocar as universidades federais como culpadas ou responsáveis pelas atitudes de pessoas ligadas a elas, seja como como docentes ou alunos. Não cabe a investigação o julgamento, apenas o levantamento de dados. Nosso intuito é promover a reflexão sobre situações que ocorrem em ambiente acadêmico e prejudicam física e psicologicamente suas vítimas. Não se pode afirmar, com clareza, se houve aumento nos casos de assédio, ou reflete apenas o aumento no número de denúncias.

Para a realização dessa reportagem, foram selecionadas cinco universidades federais do Rio Grande do Sul: Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Universidade Federal de Rio Grande (FURG) e Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que juntas, somam mais de 86 mil alunos.

Os dados foram fornecidos pelas universidades via Lei de Acesso à Informação, mas, como observado por algumas ouvidorias, é recente esse cuidado de catalogar e separar as denúncias. As universidades questionadas alegaram falta de um acervo organizado, e como no caso da FURG, o prazo de resposta foi prorrogado, mas não recebemos outra resposta. Até o fechamento dessa matéria, não recebemos resposta também da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, por isso enviamos uma reclamação ao Ministério da Educação. O MEC não se posicionou a respeito.

Assédio

Casos de assédio não são isolados. De 2014 a 2018, a Universidade Federal de Santa Maria registrou um aumento de 342% no número de denúncias de assédio moral, passando de 19 para 84 registros. A Universidade conta com mais de 28 mil alunos e em comparação com outras instituições os números continuam pequenos.

Assédio moral não é um termo novo, atualmente tem se popularizado. Ele classifica um tipo de violência em que uma pessoa humilhada, ofendida ou atacada na dignidade por outra. O assédio em ambientes acadêmicos consiste na exposição recorrente a situações degradantes. Normalmente, as vítimas são estudantes, mas também há casos em que são justamente os alunos os assediadores. Nesse segundo modelo, eles praticam a agressão contra outros alunos, professores ou funcionários da universidade. O assédio moral não está tipificado na legislação brasileira, mas caso seja comprovado o abuso psicológico, o agressor passa a responder por crime de danos morais.

Já o assédio sexual, é definido no Artigo 126 do Código Penal como o ato de “constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente de sua condição superior hierárquico”. Esse tipo de assédio engloba uma série de comportamentos, que vão desde o contato físico até um comentário com conotação sexual. Nesses casos, as vítimas são majoritariamente do gênero feminino.

Carla* é uma estudante de ciências contábeis de 23 anos, mas aos 21 a trajetória acadêmica quase foi interrompida. Não foram os problemas financeiros, nem mesmo a distância entre a cidade natal e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul que a fizeram questionar a continuidade dos estudos. No início do segundo semestre de 2017, foi a atitude de um professor que transformou o estudo em tormento.

“Eu nem tenho certeza de como começou. Um dia ele só disse que eu iria reprovar porque era burra demais para aprender o conteúdo”, conta a estudante que, mesmo agora, não enxerga um motivo no relacionamento superficial de aluno-professor que pudesse ter desencadeado tal atitude.

A partir desse dia, Carla viveu sob o estresse constante de ser ridicularizada pelo professor em sala de aula. O incômodo evoluiu para crises de ansiedade e ela passou a fazer uso de medicação, ainda em 2017.

Na Universidade Federal de Pelotas, com cerca de nove mil alunos, os dados fornecidos pela ouvidoria, mostram que de 2014 para 2018 as denúncias têm crescido. Em 2019, até maio, foram registradas 37 denúncias de assédio moral, sendo que 29 delas foram realizadas por uma mesma turma, acerca de um assunto específico.

Sobre os dados da ouvidoria da Universidade Federal do Pampa, que atualmente tem em torno de oito mil alunos, os números são pequenos, mas não se sabe se outros casos continuam a não ser denunciados.

Nos últimos anos, as universidade têm se mostrado abertas para receber as denúncias e investigar os comportamentos dos docentes e funcionários. Projetos de apoio aos alunos, de orientação e o sigilo das ouvidorias institucionais favorecem que situações que antes passariam despercebidas sejam trazidas à luz da justiça. Casos de assédio requerem investigação e acompanhamento, muitas vezes demorados, e as vítimas costumam ficar receosas de represálias. Por isso, o posicionamento das universidades facilita a abertura para falar sobre problemas como esse.

“Antes, as pessoas não pensavam em denunciar um professor que fosse abusivo na sala de aula. Era simplesmente o jeito dele. Agora os alunos tem certa noção do que o professor pode e o que é errado”, comenta Carla.

Como ocorre

Segundo pesquisadores da área, como o professor José Roberto Heloani , da UNICAMP, que há mais de 20 anos estuda o assédio moral nos ambientes de trabalho e acadêmico, o local onde mais aumenta a incidência de agressões do tipo é dentro da academia. Influenciado pelo modelo de gestão atual das universidades, em que a produtividade é o único ponto positivo esperado de alunos e professores, promulgado pelo sistema hierárquico rígido que não permite uma conversa horizontal entre diferentes setores, cria-se um ambiente de cultura para o assédio moral.

Muitas vezes, o agressor apresenta traços de narcisismo e baixa autoestima, assim como tendência a comportamento paranóico. Ele projeta nos assediados as falhas que enxerga em si mesmo e não consegue corrigir. Por sua vez, as vítimas não costumam ser pessoas frágeis, mas transparentes e com personalidade forte que questionam e batem de frente com as opiniões do assediador. Cria-se ali o terreno para uma disputa silenciosa que se vale de ameaças — sejam elas morais ou físicas — para tentar diminuir o alvo. Em ambientes acadêmicos, quando o agressor moral é um docente, é comum que o assédio se torne coletivo, pois costuma ocorrer na sala de aula, na frente de outros alunos, que dificilmente interferem.

Como no caso ocorrido na Universidade Federal de Rio Grande Campus Santo Antônio da Patrulha (FURG-SAP) relatado por Marcos*, aluno envolvido com a ocupação da universidade. Na época, uma professora, com opinião contrária ao grupo de alunos que ocupavam o campus, incitava o restante da turma contra Marcos e alguns colegas. Um deles, nordestino, sofria ainda com piadas e perseguições de caráter xenofóbico.

“A perseguição aconteceu através de represálias na sala, a professora induzia a turma a ficar contra nós. A principal forma dela nos perseguir foi aplicando uma prova incoerente com a disciplina. Ela colocou todos os alunos para fazer esse exame e só passou aqueles com quem ela não tinha essa rixa”, lembra Marcos. Mesmo com as provas físicas da perseguição, ainda houve resistência na hora de denunciar. “Principalmente por parte dos outros alunos que sofreram perseguições menores. No início, falaram que iriam denunciar essas atitudes da professora, mas com o passar do tempo, acabaram desistindo”, conclui o aluno.

Segundo ele, a ocupação ocorreu no segundo semestre de 2016, e no primeiro semestre de 2017 entraram com um processo no ministério público, mas apenas no final de 2018 uma sindicância foi instaurada para ouvir as partes. Como a demora é benéfica para os assediadores, geralmente as vítimas acabam desmotivadas e o caso cai no esquecimento.

O número de casos de assédio sexual envolvendo professores, funcionários e até mesmo colegas de faculdade, também tem aumentado ano a ano. Mesmo que o crescimento nas denúncias seja um fator benéfico e importante, a frequência dos casos preocupa até mesmo professores. Regina* é professora no curso de Psicologia da Universidade Federal de Pelotas e já ouviu dos alunos, em caráter de conversa, relatos que também não chegam à ouvidoria das instituições.

“Uma vez, uma aluna me disse que não tinha coragem de denunciar a situação como assédio sexual, pois as pessoas iriam minimizar o que ela tinha sentido”. A aluna em questão reclamava de ser constantemente abraçada pelo professor, mas não levava adiante a queixa por medo da opinião, até mesmo dos colegas. “Eles ainda têm medo de reprimendas, mas ninguém pode ser obrigado a conviver com essa situação”, reitera a professora. “É um absurdo um professor oferecer o projeto em troca de sexo.”

Traumas na juventude

Outro ponto importante mencionado pela professora é a idade em que os assédios costumam ocorrer.

“A maioria dos alunos está saindo da adolescência e entrando na vida adulta quando chega na faculdade. Por parecerem adultos, muitas vezes nós mesmos, os professores, nos esquecemos de que ainda estão em uma fase de descobertas e aprendizado.”

Segundo a professora, os abusos e traumas nessa fase da vida podem ser tão prejudiciais quanto os sofridos na infância. A vergonha e a culpa desencadeiam bloqueios e geram dificuldade de se relacionar até mesmo com a própria sexualidade, além de mudanças de temperamento, dificuldade de concentração e aprendizagem e, em casos mais graves, depressão e ansiedade.

“O trauma se torna uma vergonha, um segredo que não pode ser revelado. A vítima se sente inferior por ter passado por aquela situação. E é nesses momentos que ela desiste de denunciar”, explica Regina.

Segundo ela, mesmo que cada vez haja mais informações e apoio às vítimas, ainda existem muitos casos que não vem à tona. A ideia de ser culpado pelo ocorrido faz com que muitos jovens, principalmente nesse início da vida adulta, prefiram esconder o que seria uma “falha”.

Assédios e denúncias

Uma das intenções da reportagem era fazer um recorte de gênero que mostrasse as incidências com essa separação, mas uma das possibilidades da denúncia é ser feita anonimamente. Por esse motivo, as ouvidorias não fazem distinção de gênero nos registros. Para tentar atender essa necessidade, foi realizada uma pesquisa de questionário.

Utilizando a rede social Twitter, foi lançada a ideia geral da reportagem com um pedido para alunos de universidades federais do Rio Grande do Sul entrarem em contato via mensagem. Depois do primeiro contato, responderam a um questionário de questões objetivas sobre assédio moral e sexual no ambiente acadêmico. Como era anunciado o tema da pesquisa, os alunos que se dispuseram a participar já relatavam ter ocorrido um tipo de agressão. Das 47 respostas que obtivemos, 28 foram do gênero feminino e 19 do gênero masculino.

Entre o gênero feminino, houve 15 relatos de assédios morais e nove de assédios sexuais. Já no gênero masculino, oito casos de assédios morais e apenas um de assédio sexual.

Os participantes apresentaram idades entre 19 e 32 anos e são alunos das Universidade Federal do Rio Grande, da Universidade Federal de Pelotas e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Desses casos, apenas uma pequena parte chega à ouvidoria ou outros órgãos de denúncia, apesar da maior liberdade e facilidade de poder denunciar. O medo de reprimendas e pressão ainda é maior do que a informação.

Do gênero feminino, houve seis casos de denúncia para assédio moral e três de assédio sexual. Do gênero masculino, quatro denúncias de assédio moral e nenhuma de assédio sexual.

Segundo dados do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul, até 68% das estudantes do gênero feminino sofrem assédio no ambiente acadêmico. Com estudantes do gênero masculino, o número fica em torno de 17%, mas acredita-se que seja maior, já que a denúncia de assédio muitas vezes é barrada pelo preconceito que possa sofrer.

“Além da represália, os homens estão acostumados com essa ideia machista de que não podem ser fracos. As denúncias são 17%, mas as ameaças que não chegam até a ouvidoria calculamos que seja em torno de 40%”, comenta a professora de psicologia.

O que se observa, no panorama geral, é o aumento das denúncias, concomitante ou não, ao aumento do número de assédios. Isso se deve, em parte, à distribuição de informações e redes de apoio e proteção aos estudantes, que buscam fornecer um ambiente acolhedor, com suporte e maior abertura para falar sobre.

Todos os anos, casos de denúncias de assédio são mostrados na mídia e as vítimas se sentem mais dispostas a se pronunciar. Como nos casos das universidades, quando questionadas sobre a validade de se debater as práticas abusivas, a resposta é sempre afirmativa, como comenta a estudante Carla, mencionada no início da matéria.

“’Pra mim, toda informação é bem-vinda. Se as universidades se preocupam em falar sobre isso, ótimo. Mas nós mesmas precisamos falar. E as pessoas de fora precisam nos ouvir e entender que não é brincadeira, não é paranoia. Essas coisas acontecem com gente que tu nem imagina.”

*Os nomes foram trocados para preservar a identidade dos entrevistados.
Por Bruna Lago e Vanessa Lourenço

[Matéria publicada em: https://medium.com/betaredacao]