Desde fim de 2008, mais de mil trabalhadores entraram na Justiça paulista alegando humilhações e ameaças no emprego. Dificuldades nas empresas por causa da crise podem gerar situações de assédio, embora falte legislação federal específica no país.
A.S., ex-diretor de Recursos Humanos de uma indústria de motocicletas, diz que não apoiou a demissão de centenas de funcionários que poderiam ser lesados em seus direitos. Perdeu poder na empresa, foi ameaçado veladamente e acabou demitido no mês passado.
O executivo decidiu cobrar na Justiça do Trabalho o assédio moral que acredita ter sofrido após as medidas que a companhia adotou para enfrentar os efeitos da crise mundial.Vendedora de uma empresa de cosméticos, M.S. diz que foi isolada por colegas que temiam a competição no trabalho. Passou a receber e-mails com vírus para atrasar e desqualificar seu desempenho. Teve de trabalhar de madrugada para colocar o serviço em dia até ser afastada por doença física e psíquica e também acionou a Justiça por assédio moral.
Advogados relatam que a pressão para melhorar os resultados diante dos efeitos da crise mundial se dissemina e coloca cada vez mais trabalhadores -como o ex-diretor de RH e a vendedora- em situações de possível assédio moral.
Em 12 escritórios de advogados consultados pela Folha na última semana, aumentou desde outubro o número de ações trabalhistas ou de consultas para abrir processos e pedir indenizações por assédio moral.
A Associação dos Advogados Trabalhistas do Estado de São Paulo (AATSP) estima que os mil profissionais associados ingressaram na Justiça com ao menos uma ação de assédio moral cada um desde que a crise se agravou no final de 2008.
Procuradores do Ministério Público do Trabalho em seis Estados (Rio, Pernambuco, Piauí, Ceará, Santa Catarina e São Paulo) e no Distrito Federal investigam 145 denúncias recebidas neste ano sobre assédio nos setores aéreo, bancário, metalúrgico e de comércio.
É considerado assédio moral um conjunto de condutas abusivas, frequentes e intencionais que atingem a dignidade da pessoa e que resultam em humilhação e sofrimento. “O assédio moral, também chamado de “terror psicológico” no trabalho, é hoje um dos requisitos para aumentar a produtividade nas empresas, que precisam ser mais competitivas contra a crise”, diz Luiz Salvador, presidente da Abrat (associação brasileira dos advogados do setor).
Com o acirramento da competição, o assédio moral tende a crescer intra e entre os grupos nas empresas de diferentes setores -principalmente em segmentos onde a tensão é maior, como mercado financeiro e empresas que tiveram o patrimônio reduzido na crise.
“Existe uma crise real e uma imaginária, que torna os funcionários mais inseguros e angustiados. Com essa tensão coletiva, o clima é de maior disputa. Quem está fora do mercado quer entrar, e quem está dentro não quer sair. Os gestores são mais pressionados, pressionam os empregados da produção, e as situações de assédio vão se alastrando”, diz o pesquisador Roberto Heloani, professor da FGV e da Unicamp.
O número de consultas ao site (www.assediomoral.org.br) cresceu cerca de 20% desde que a crise se agravou, em outubro, afirma Heloani, coordenador do site. Em alguns escritórios paulistas, a demanda por essas informações subiu em 30% nos últimos dois meses.
O assédio, que se espalha do alto escalão à produção, atinge trabalhadores de todas as rendas. Um alto executivo americano que veio ao Brasil comandar grupo de assuntos estratégicos de um banco por quase R$ 60 mil mensais já recorreu à Justiça por assédio. Com a crise, sua função foi extinta. Ele foi deixado em casa até o banco romper seu contrato, antes do prazo previsto e sem pagar a devida indenização.
Cobrar metas faz parte do dia a dia de qualquer empresa. O problema, dizem os especialistas, é a forma dessa cobrança. Se houver humilhação e ameaça, está caracterizado o assédio. “A imposição de metas para alcançar maior produtividade não implica qualquer violação aos direitos do empregado. Ao contrário, já que podem servir como motivação para alcançar bônus ou prêmio. Mas as metas não podem ser absurdas nem abusivas”, diz Otavio Brito Lopes, procurador-geral do Trabalho.
Não há legislação federal específica para o assédio moral no Brasil. Por isso, parte dos advogados crê que, em épocas de crise, o assédio pode ser “usado” pelos trabalhadores para pleitearem indenizações.
“Há pedidos absurdos relativos a assédio moral e com valores desproporcionais. Essa situação é fruto da angústia e desespero dos trabalhadores quando são demitidos. Com isso, demandas verdadeiras de assédio moral ficam sujeitas à idéia de também serem despropositadas”, diz o advogado Guilherme Miguel Gantus.
Falta de lei dificulta definir assédio moral.
Associação de juízes diz que lei federal evitaria subjetividade; Congresso tem 21 projetos sobre o tema.
Da reportagem local
A falta de uma lei federal específica para regular o assédio moral no país, como existe na França, dificulta o entendimento sobre a questão e pode dar margem a situações que colocam em dúvida se o assédio moral de fato ocorreu.
No setor público, alguns Estados, como São Paulo e Rio de Janeiro, têm leis que tratam o assunto, protegem os funcionários públicos e preveem punição aos agressores. Para o setor privado, porém, não há regras.
Pesquisa feita recentemente pela Anamatra (associação que reúne os juízes trabalhistas do país) mostra que 79% dos juízes apontaram a necessidade de que o assédio moral seja regulamentado em lei.
“A regulação é importante porque estabelece limites mais claros e critérios objetivos do que é ou não assédio, de que forma ocorre e como deve ser indenizado. Os juízes vão se sentir mais seguros na hora de julgar um caso. Hoje a interpretação é meramente subjetiva”, afirma Cláudio José Montesso, presidente da Anamatra.
Para se estabelecer essas regras, o juiz entende que é necessário ter a participação de especialistas em RH e psicólogos para que o conceito do assédio seja abrangente e contemple as diferentes modalidades em que ele pode ocorrer. Em sua opinião, ao se criar uma lei federal sobre o assédio, com penas e sanções, as empresas vão se preocupar em desenvolver programas e ações preventivas.
Atualmente, 21 projetos sobre assédio moral estão em tramitação no Congresso. “Nesses projetos, o assédio moral é condenado como crime, como o que ocorreu com o assédio sexual”, diz Roberto Heloani, da FGV e da Unicamp.
Alguns juízes e advogados trabalhistas discordam, entretanto, da necessidade de se criar uma lei. “A regulação seria nociva. Determinar regras restringe a liberdade do julgador ao considerar o que pode ou não ser assédio moral”, diz o advogado Luis Carlos Moro.
É cada vez mais comum a Justiça do Trabalho determinar indenizações significativas às vítimas. Mas o valor deve levar em conta a capacidade econômica das empresas, não a condição social e o salário do trabalhador, segundo avalia a advogada Sônia Mascaro Nascimento, professora de Direito do Trabalho da USP.
“Os juízes têm condenado as empresas de forma rigorosa. Mas falta ainda critério mais justo na hora de determinar o valor da ação. Não adianta condenar em excesso e condenar mal”, diz a advogada.
Marcos Fava, juiz do Trabalho, acredita que a criação de uma lei para regular o assédio pode limitar ainda mais os valores pagos às vítimas. “É bom que não tenha lei porque pode limitar a tarifação dos processos. Você define que puxar o cabelo vale R$ 10 mil, enfiar o lápis no funcionário vale R$ 20 mil. A lei pode atrapalhar.”
Lis Andrea Pereira Soboll, professora e consultora de organizações, diz que há muitas situações em que o trabalhador se considera vítima de assédio moral sem razão. “A crise vem sendo usada por empresas como desculpa para demitir. Mas o assédio moral não está relacionado a todas as demissões.”
Antes da crise, as empresas tinham preocupação em buscar profissionais que ajudassem a prevenir a prática de assédio moral. “Esses treinamentos foram adiados agora por questões financeiras”, diz Soboll.
Já Maria Maeno, da Fundacentro, acha que, com a crise, as empresas reduzem custos e pressionam os empregados. “Como o trabalhador tem medo de ser demitido, vai suportando essas situações que podem ser também assédio.”
(Claudia Rolli e Fátima Fernandes)