No início de 2011, os servidores da USP foram alvo de grande
perversidade. No ataque, concretizado em 05 de janeiro, foram realizados os
“desligamentos” (conforme constou no sistema informatizado da Universidade) de 271
servidores e estes tiveram ciência do ocorrido quase que por acaso ao tentarem acessar
páginas virtuais pelo provedor institucional. Sem propósito sensacionalista, o fato real
foi que logo após a virada do ano, ainda no embalo das festas do período, que
impulsionam os sentimentos de uma vida melhor e mais próspera, alguns servidores
souberam que estavam “desligados” da Universidade, sem qualquer aviso ou
comunicação prévia. Sem o mínimo respeito, portanto, à sua condição humana, essas
pessoas foram alijadas do trabalho e de sua fonte de sobrevivência.
E para não ficar aqui falando de números, vejamos alguns
efeitos concretos dessa situação. O fato se deu, por exemplo, com:
1) a Sra. Nancy de Queiroz Silva, Auxiliar de Laboratório, que
iniciou suas atividades na Universidade em março de 1984, e que atualmente trabalhava
no Instituto de Ciências Biomédicas;
2) a Sra. Valdete Meireles dos Santos, Vigia, que ingressou nos
quadros da Universidade em fevereiro de 1984 e atuava no Instituto de Ciências
Biomédicas;
3) a Sra. Vera Lucia L. Soares, Técnica Especializada, que
ingressou na Universidade em 1986, e atuava na Reitoria;
4) a Sra. Zelma Fernandes Marinho, Técnica de Laboratório,
que ingressou na Universidade em janeiro de 1984 e atuava no Instituto de Ciências
Biomédicas.
Essas pessoas, como tantas outras, eram servidoras da
Universidade há longa data e nunca tiveram qualquer tipo de ocorrência negativa, que
pudesse pôr em risco a preservação de seus vínculos de emprego. Todos esses cidadãos,
portanto, foram vítimas de uma violência extrema, oriunda, unicamente, de um sentimento de revanche do Administrador com relação à atuação do conjunto dos
servidores, por intermédio de sua entidade representativa, o SINTUSP.
A única forma que se teria para rechaçar a conclusão supra seria
a exposição de motivos, legalmente válidos, para o ato da dispensa coletiva praticada,
afinal, todo ato administrativo deve ser, necessariamente, motivado, sendo que a
motivação não pode ser torpe e deve estar envolvida no contexto do interesse público.
Essa motivação não foi exposta a nenhum dos servidores
“desligados”, o que, por si só, aniquila qualquer possibilidade considerar legítimo o ato,
até porque outro requisito necessário à prática do ato administrativo é a sua necessária
publicidade. De fato, os atos de “desligamentos” foram por assim dizer “atos secretos”,
seguindo a moda instaurada recentemente no Senado Federal, desferidos à sorrelfa, na
“calada da noite”, sem qualquer tipo de publicidade e, sobretudo, sem apresentação de
qualquer tipo de fundamentação.
O que existe a respeito são meras especulações com a
instauração de um autêntico “jogo de apostas” para se tentar adivinhar o que teria
passado pela cabeça do Administrador quando praticou o ato da dispensa coletiva de
servidores no âmbito da Universidade de São Paulo.
Uma primeira especulação sugere que as dispensas tenham sido
motivadas pelo fato de que os servidores em questão, todos eles, já se encontravam
aposentados por tempo de contribuição junto ao INSS.
Se a motivação foi essa, nenhuma possibilidade terá de se
manter juridicamente, visto que constitui uma afronta à compreensão do Supremo
Tribunal Federal, expressa em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade (n. 1.721 e
n. 1.770), no sentido de que a aposentadoria não extingue o contrato de trabalho.
Além disso, a própria Universidade de São Paulo, por ocasião da
divulgação da decisão do STF, publicou comunicações internas esclarecendo que os
servidores que preenchessem os requisitos para a aposentadoria por tempo de
contribuição junto ao INSS não estariam obrigados a se desvincular da Universidade,
impondo-lhes, apenas, o preenchimento de um “Termo de Manifestação de
Continuidade do Contrato de Trabalho em face da Aposentadoria Espontânea”,
conforme modelo institucionalmente elaborado.
Dentro dessa perspectiva histórica, portanto, é impossível não
compreender que as aposentadorias de muitos desses servidores foram incentivadas pela
Universidade, como forma até mesmo de complementação dos baixos salários, sendo certo que muitos desses servidores, ora “desligados”, requereram suas aposentadorias na
modalidade proporcional, com redução do valor do benefício.
Assim, a dispensa desses servidores pela Universidade, a partir
desse suposto motivo, constituiria ao mesmo tempo uma afronta ao Supremo Tribunal
Federal e uma autêntica traição, com ferimento ao princípio do ato jurídico perfeito.
Nem cabe tentar apoiar a iniciativa no art. 37, § 10 da CF, que
prevê a impossibilidade de se acumular aposentadoria com provento de cargo público,
pois esses servidores eram “celetistas”, ocupantes de empregos públicos, e suas
aposentadorias advinham do Regime Geral da Previdência Social e não de Regime
Especial.
Especula-se, ainda, que a motivação poderia estar centrada no
fato de terem os “desligados” ingressado no serviço público sem prévia aprovação em
processo seletivo.
No entanto, a análise de situações particulares rejeita essa tese.
Por exemplo, a Sra. Sônia Regina Bernades, Técnico de Enfermagem, com atuação no
Hospital Universitário, ingressou nos quadros da Universidade em 15 de maio de 2001,
mediante processo seletivo estatuído em conformidade com Edital publicado no Diário
Oficial de 03/05/01. O mesmo se deu com a Sra. Ângela Maria Casemiro de Jesus,
Técnico para Assuntos Administrativos, que foi contratada mediante processo seletivo,
nos termos do Edital publicado no D.O., de 24/04/01.
Além disso, em muitos casos, como com relação às quatro
primeiras servidoras acima referidas, a contratação se deu antes da vigência da
Constituição de 1988, quando o concurso público não era exigido como condição
essencial para ingresso no serviço público, tanto que a própria Constituição de 1988
conferiu estabilidade aos servidores em tal situação que tivessem sido contratados até
cinco anos antes da promulgação da Constituição, que se deu em 05/10/88, o que
significou, como efeito reverso, a legitimação das contratações sem concurso de
05/10/83 a 04/10/88, ainda que excluída, naquele momento, a estabilidade para tais
servidores.
Que se dirá, então, do caso da Sra. Natalina de Jesus D. da Luz,
que passou a integrar o quadro de servidores da USP em junho de 1986 mediante
processo seletivo.
E se a preocupação fosse, concretamente, com a legalidade,
inúmeros outros assuntos mereceriam atenção antecedente como a da ampliação da prática da terceirização, que, por certo, quebra, de forma nítida, o requisito
constitucional da contratação de servidores por intermédio de aprovação em concurso
público.
E, ainda que se pudesse vislumbrar algum propósito saneador no
ato da dispensa coletiva praticada pelo Sr. Reitor, excluindo servidores não concursados
dos quadros de servidores, a situação presente se revelaria ilegal pela ausência total de
critérios para fazê-lo, afinal, sabe-se que vários outros servidores, não desligados,
encontram-se na mesma situação de terem sido contratos sem concurso público. Ainda
que a persistência de uma ilegalidade não torne outra legítima, o fato concreto é que o
ato administrativo não pode criar discriminações. E, ademais, se irregularidade
houvesse esta teria sido cometida, em primeiro plano, pela própria Universidade, que
não poderia, então, se utilizar de sua torpeza, de forma unilateral, na conveniência da
satisfação
de
sentimentos
pessoais
do
Administrador,
impulsionados,
indisfarçavelmente, pelo desejo de retaliação e de demonstração de poder,
desvinculados, pois, de qualquer interesse público.
Neste último aspecto convém acrescentar que para se chegar aos
nomes dos “desligados” nenhuma avaliação de desempenho foi realizada. Aliás, sequer
os Diretores das Unidades onde os servidores “desligados” atuavam foram consultados
e mesmo os respectivos superiores hierárquicos desses servidores o foram. No contexto
da falta de critérios objetivos, algumas atividades da Universidade, muito ao contrário,
tiveram sua eficácia extremamente abalada com a perda abrupta de trabalhadores que
realizavam serviços a contento por vários anos a fio.
Especula-se, por fim, que poderá dizer a Administração que a
dispensa coletiva se deu em razão de um ajuste orçamentário. Mas, para uma
Universidade cujo orçamento gira em torno de 3,5 bilhões, a dispensa de 271
servidores, sem qualquer sofisma possível, não representa nada em termos econômicos
e ainda que representasse, não caberia à Administração, unilateralmente, deliberar a
respeito, buscando o ajuste por intermédio do sacrifício de empregos, pois antes do
interesse econômico está a eficácia do ordenamento jurídico de proteção aos preceitos
dos Direitos Humanos. Neste sentido, o Tribunal Superior do Trabalho (caso
EMBRAER – RODC 309/2009-000-15-00.4 – Relator, Ministro Maurício Godinho
Delgado) deixou claro, recentemente, que qualquer dispensa coletiva de trabalhadores
deve ser precedida, no mínimo, de negociação com o sindicato da respectiva categoria
profissional.
Como se vê, nem com a utilização de suposições é possível
encontrar um argumento sequer de legalidade para o ato praticado pela Administração
da USP, resultando, por conseguinte, em mera discriminação com relação aos
aposentados.
O ato, que passa pelo propósito de destruição da resistência da
organização sindical dos servidores, impondo uma espécie de terror junto aos servidores
próximos da aposentadoria, notadamente, os principais líderes sindicais hoje em atuação
no âmbito da Universidade, foi desviado da necessária legalidade, tendo, até mesmo,
contrariado Parecer expedido pela Procuradoria da Universidade, que, sob consulta,
apontara a impropriedade da medida.
O ato foi uma afronta aos preceitos constitucionais, ao Supremo
Tribunal Federal e ao Tribunal Superior do Trabalho.
A atitude inconseqüente tomada sequer vislumbrou o sofrimento
que impôs às pessoas que prestavam serviços há vários anos à Universidade e extraíam
do trabalho a fonte de sua sobrevivência. Esse sofrimento, aliás, foi potencializado pela
forma impessoal, abrupta e covarde, como o tal “desligamento” se deu.
Não se pode deixar de pôr em destaque, por fim, o quanto o ato
praticado gera dano econômico e moral à própria Universidade. Do ponto de vista
moral, a atitude torpe de gerar sofrimento imerecido a pessoas que, há muitos anos, sem
cometimento de qualquer tipo de falta, prestavam serviços de forma plenamente
eficiente à Universidade, abala a imagem da USP perante à sociedade. Sob o prisma
econômico, a agressão praticada, da dispensa coletiva de trabalhadores, baseados em
motivo torpe, com efeito discriminatório e sem o mínimo respeito aos preceitos
jurídicos que preservam a condição humana, cria o risco de um enorme passivo
trabalhista, decorrente das quase certas indenizações por danos morais que os servidores
“desligados” poderão angariar a partir das decisões do STF e do TST e da própria forma
como o “desligamento” ocorreu, sem falar das reintegrações e do conseqüente
recebimento de salários retroativos.
A comunidade da USP, composta por servidores, alunos e
professores, precisa, urgentemente, impedir que o grave erro da Administração persista,
exigindo a imediata revogação desses perversos e ilegais “desligamentos”.
São Paulo, 17 de janeiro de 2011.