Fonte: Jornal do Judiciário – Edição nº 323 – 22/Agosto/2008 – Página 4
Jornal do Judiciário – Quando a sra. iniciou as pesquisas sobre o tema? Desde então tem visto avanços no combate à prática ou aumentou o assédio moral nos locais de trabalho? Quais seriam as causas?
Margarida Barreto – De forma organizada e como pesquisa acadêmica, foi em março de 1996. Entretanto, tudo começou em 1992 quando comecei a trabalhar no Sindicato dos Trabalhadores Químicos e Plásticos de São Paulo. Lá, ouvia história de sofrimento que de alguma forma me incomodava pois não conseguia vê os trabalhadores como culpado pelo processo de adoecimento, da doença ou do acidente ocorrido. Acreditava que existia algo que fugia ao meu entendimento de ginecologista, pois estava começando a atuar na área da Medicina do Trabalho. E por isso, fui para Psicologia Social e me submeti ao mestrado. Queria compreender o grito de sofrimento…. A dor do outro. Fiz varias tentativas para compreender e refletir o que ocorreu (e e ainda ocorre) no mundo do trabalho e relações laborais. O que acontece? Tivemos, nestas duas ultimas décadas, mudanças nos processos produtivos, reestruturações e reengenharias. A medida que o processo de globalização se expandia, os efeitos nefastos foram imediatos (e continua): desregulamentações, perdas de direitos , imposição de políticas de cunho neoliberal e pensamento único caminharam juntos, resultando em assimetrias no desenvolvimento regional, precarização do trabalho, baixos salários, incerteza quanto a permanência no emprego. Era necessário que estimulassem o individualismo e competitividade. Aos poucos, o pensamento único impôs-se em especial, no plano ideológico. Nunca vivemos tempos como o atual, em que se nega ou se tenta neutralizar e até ridicularizar a variante ideológica, em qualquer discussão, resistência ou conflito. Em síntese, a causa do assedio moral está relacionada a dois fatores: cultura organizacional e forma de organizar o trabalho. Como variáveis temos a competição exacerbada, a hierarquia assimétrica e centralizada, estágios mal definidos, cultivo da cultura da indiferença e insensibilidade pelo sofrimento alheio; falta de pessoal o que leva a sobrecarga física e mental de trabalho, obrigando a trabalho suplementar; A prática do assédio moral está ancorada na busca desenfreada dos resultados, no aumento da produtividade e lucratividade, em um clima organizacional de pressão e opressão à todos os trabalhadores e trabalhadoras. Felizmente existe a resistência e luta de muitos trabalhadores e trabalhadoras, que ainda acreditam na possibilidade de um mundo do trabalho no qual predomine relações respeitosas, dignas e humanas.
JJ – Quais são as diferenças entre o assédio no serviço público e no setor privado?
MB – No setor privado, todo o processo dura menos tempo. No máximo, 1 ano ou pouco mais. No setor publico ao contrário: se prolonga no tempo, sendo comum o trabalhador conhecer a dança da cadeira ou melhor: vão de um setor a outro, de uma região a outra, na esperança que o assédio se transforme em coisa do passado, o que nem sempre acontece, pois leva consigo o estigma e o assédio se repete.
JJ – Como estabelecer um nexo causal entre os sintomas da vítima e o ambiente de trabalho?
MB – Está fundamentado na escuta clínica apurada ou melhor, na história ocupacional, o que faz e como faz. O importante é sabermos como se estabelecem as relações no meio ambiente laboral, quais as mudanças que ocorreram no processo de organizar e administrar o trabalho, qual a cultura organizacional que predomina, se o sistema de avaliação é usado para estigmatizar, como o contingente de trabalhadores atende a demanda imposta, se há ou não respeito nas relações hierárquicas, se os horários de trabalho são regulares ou não, pois os padrões temporais tem múltiplos determinantes e podem afetar desde os relacionamento em família ate a saúde dos trabalhadores, na medida em que empobrece a comunicação, enfraquecendo os laços de amizade.
JJ – Na pesquisa sobre assédio moral nos locais de trabalho, realizada pelo Sintrajud, qual índice chama mais atenção?
MB – Toda a pesquisa é reveladora de uma realidade vivida. No caso desta categoria, poderíamos pensar, por suas características, que primasse o respeito ao outro nas relações de trabalho. Ledo engano. O que temos, apesar do tema ser conhecido de todos? Uma certa naturalização e banalização destes atos e que segundo as respostas, são mais praticados por mulheres em cargos hierárquicos! É surpreendente o percentual de trabalhadores e trabalhadoras que já foram vitimas deste tipo de prática. Também é lastimável, pois o autoritarismo é a grande ferramenta daqueles que não sabem comandar, não sabem liderar, e neste sentido, revela uma certa impotência. As mudanças emocionais dos trabalhadores certamente começam com as mudanças nas relações especialmente quando não há o reconhecimento e respeito ao esforço e trabalho desenvolvido pelo outro.
JJ – Qual a importância dos sindicatos no combate ao assédio moral nos locais de trabalho?
MB – É fundamental que reflitam as múltiplas contradições existentes na relação capital x trabalho, mesmo aquelas que ao primeiro olhar, pareçam sutis e inexistentes. O contato com os trabalhadores, da base à administração, não pode ser esquecido. Devem pensar e elaborar estratégias de resistência para enfrentar esses diferentes e complexos problemas que hoje se apresentam e que estão relacionados a uma maior exploração. Caracterizar as condições objetivas do trabalho, refletir as mudanças e transformações que ocorreram nestes últimos anos, analisar o aumento da riqueza em mãos de poucos e não em mãos dos trabalhadores, para responder de forma coletiva as novas demandas quer no plano organizativo ou de intervenção social, se quisermos de fato, uma outra sociedade na qual impere relações fraternas e humanas e não relações egoístas centradas no Eu que lida com o outro como se fosse uma mercadoria, consumindo tudo e todos, de forma desenfreada. Não podemos abrir mão de lutas fundamentais como o direito ao trabalho, a segurança, a estabilidade no emprego, a redução da jornada de trabalho, a defesa dos direitos laborais conquistados. Devemos ampliar o arco de conquistas, combatendo, denunciando e resistindo de forma eficaz a toda e qualquer manifestação de precarização do trabalho. Essa, é uma necessidade histórica, que ainda não realizamos.
JJ – Como as novas formas de organização do trabalho, focadas somente na produtividade, podem propiciar o assédio moral?
MB – Quando falamos em produtividade estamos falando de produção e produtos em todas as áreas da empresa. Ou melhor, desde finanças, pessoal, compras, vendas, apoio até a produção. Todas as empresas, quer publica ou privada e de diferentes ramos produtivos, instituíram e perseguem programas de qualidade e produtividade que associados a novas formas de administrar com envolvimento de todos e todas, tragam elevação acentuada da produção e aumento dos ganhos com diminuição dos custos e gastos. Para alcançar esses objetivos, dizem ser necessário: metas desafiadoras e que possam ser alcançadas; motivar a equipe para esses ideais; zerar o defeito do produto, rumo a qualidade total. Enquanto o ciclo avança, a sujeição e o medo se instaura no coletivo. Os trabalhadores sentem o perigo de serem excluídos e por isso, baixam a cabeça e obedecem. Esse comportamento permite aumentar o controle, exigir mais firmemente, dá ordens acima do aceitável, abusar do poder. Em conseqüência, o ambiente propicia os desmandos, os constrangimentos, as ameaças. Não esqueçamos que a eficiência dos resultados estão diretamente relacionadas com as formas de administrar e organizar o trabalho, o controle e disciplina do coletivo e a exigência de produtividade máxima para todos. Para se chegar a esses objetivos foram mexendo inicialmente nos layouts, criando novos espaços para gerentes e supervisores, dando ares de modernidade ao ambiente e começou-se a falar em ambientes “cleans” propiciavam harmonia, humanismo, possibilitavam mais bem estar e mais produtividade. E só este aspecto dobrou a produtividade. Mas, estes senhores deviam mexer com outros setores…restou ao final a produção e suas rotinas… Aqui o “layout” foi com as pessoas ou seja: diminuir os considerados excedentes e improdutivos; contratar estagiários com salários 1/3 menores que os antigos trabalhadores, terceirizar serviços. A produtividade dobra, e se isso ocorre é porque a pressão, o medo e silencio estão rolando no coletivo.
JJ – Como a vítima pode vencer a barreira do medo e denunciar?
MB – Aprendemos a ter medo por “n” condições. Temos medo ante uma ameaça objetiva. Não nascemos com medo, se o temos, é um aprendizado instituído socialmente, na relação com o outro. É um sentimento imposto por certas condições e situações. Este sentimento, pode nos ajudar a identificar, a conhecer e perceber os fatos que ocorrem ao redor ou no posto de trabalho. Quando as empresas utilizam esse sentimento para gerenciar e administrar pessoas, sua finalidade não é auxiliar o trabalhador, mas submetê-lo, tornando-o servil e sujeitado ao outro, obedecendo cegamente às ordens emanadas. é verdade que aprendemos desde terna infância que devemos obedecer as ordens do outro por medo de que, o caldo de sua ira, entorne sobre nós ou que o castigo divino caia em nós, nos impedindo de uma boa vida eterna. Deste modo, o medo nos paralisa, nos amortece e por medo nos tornamos indiferentes a dor do outro. Se não compreendemos o nosso medo e o superamos, o transformamos em pavor, pânico e alimentamos temores não somente de nossos atos mas, em especial, do outro que está ao meu lado. O poder do medo é tal que muitas empresas, hoje, administram pelo medo, usando ameaças e intimidações. Boa arma ideológica para impedir a participação ou se sindicalizar ou mesmo conversar na porta da empresa com um dirigente sindical. É o medo de ser visto, identificado e marcado. Vencemos o medo individual com ações coletivas. Só com o apoio e ajuda fraterna de muitos outros que me sinto forte para enfrentar, resistir e denunciar. Assim, devemos compreender o porque do nosso medo, descobrindo suas causas, o que está por trás desta emoção/sentimento e ter como perspectiva supera-lo, não permitindo que esse sentimento controle você, tornado-a uma boa presa para os opressores, que manipulam os nossos medos. Pode parecer difícil, mas com a ajuda e amizade de outros colegas, é mais que possível derrubar a barreira do medo e ultrapassá-la. Devemos sempre lembrar que resignar-se ao estabelecido ou imposto, é uma forma de morrer lentamente, de matar a nossa criatividade e assassinar a esperança que existe dentro de cada um de nós!