Ciclo

Ciclo

Era o chão,
Fez-se o leito
Do rio que não
Pode ser feito
Cavado de mão.
Está perfeito.

Terra, desnível,
Corrente no vão.
D’água este cinzel.
Esculpiu sem mão.
Caminho ao léu.
Melhor solução.

Correu na queda,
O vale tampou.
De água veda
O que escavou.

Água, subida.
Lago quer formar.
Rio engravida.
Abraça o lugar.

Peso vai parir,
Eleva, prende
Para prosseguir.
Calda estende.

Na queda o show.
Fez cachoeira,
Mal recuperou
Da corredeira.

Queda com classe!
Desceu e serviu
A quem morasse
Num vão do Brasil.

Se apraz o lugar,
Cria meandros.
Modo de abraçar!
Braços malandros.

Segue, vai maior,
Costura o país.
Trabalho e suor!
Mar salgado o diz.

Estrada, vida,
Alimento são,
Missão cumprida,
Pintura no chão.

Opostos. Lados:
Margens agora!
Estão selados.
Vão, rio afora.

Transpirou ao ar,
Foi afluente,
Foi até o mar,
E, diferente,
Do vapor do mar:
Outra nascente.

O tempo marcou:
Terra molhada,
Ou ressecada,
O barco passou.

Navegar, beber,
Nadar e plantar.
Não deve morrer.
Não pode parar.

Se disto esquecer,
Não irá buscar,
Para reviver,
Salário do mar.

Escorre e escoa.
Não morre. Doa.
Outro rio ao mar.
Troca de lugar.

Rio corre assim:
Começo é fim.

 

Crion Nato 27108 )

Violência: pare e pense!

Violência: pare e pense!

Quando demitiram os negros,
eu não era negro e não fiz nada.

Quando demitiram os adoecidos e acidentados do trabalho

eu não era adoecido do trabalho e porque iria defende-los?

Quando demitiram as mulheres,
eu não era mulher. Ia fazer o que?

Quando demitiram os mais velhos,
eu não era velho e nada fiz nada.

Quando vieram contra meus colegas de trabalho,

o assunto não me dizia respeito e nada fiz. Calado fiquei.

Finalmente, quando vieram contra mim…
Ninguém me defendeu!

Aquele que nunca sofreu qualquer tipo de violência
sempre pensará que o sofrimento do outro
não é grande coisa, que é exagero.

Alguns até acham que a violência moral, as discriminações e o racismo não existem!
Que não existe discriminação contra os negros, contra as mulheres, os doentes, os acidentados do trabalho, os desempregados, os favelados, os sem teto, os sem terra…

E assim seguimos e fazemos todos os dias:
desprezamos ou diminuímos
o sofrimento alheio.

Não dando atenção à dor do outro nos condenamos a sofrer em silêncio

a nossa própria dor.
O nosso silêncio
favorece os opressores e nos faz cúmplice.
Quem, por medo, se cala,
De alguma forma, concorda com o tirano.
E tudo parece muito normal,

tão normal quanto sofrido e solitário. E as injustiças são banalizadas.

Quem sabe, aquelas frases ditas anteriormente poderiam ser reescritas assim?

Quando vieram contra os negros,
eu nada fiz.
Pois em meu silencio, eu também era contra os negros.
Quando vieram contra os adoecidos e acidentados do trabalho

eu não era adoecido e fiquei em silencio.
Na verdade, eu era contra aqueles que adoeciam, pois eu achava que eles fingiam.
Quando vieram contra as mulheres,
eu não era mulher e permaneci em silencio. Eu era contra as mulheres.
Quando vieram contra os desempregados,
eu não era desempregado e não fiz nada e,

calado, também eu era contra os desempregados.

Quando vieram contra os analfabetos, os favelados, os sem teto e os sem terra, não fiz nada e, em silencio, também eu era contra os favelados, os sem teto e sem terra.

Quando vieram contra mim, ninguém me defendeu, usaram o silêncio e a indiferença para apoiar meus inimigos.

Talvez uma lição a ser aprendida:
o que nos faz iguais é que somos, todos,
diferentes uns dos outros.

Então, reflitam: de onde vem esse medo de ser diferente?
Por que permanecemos em silêncio? Porque nos submetemos? Porque nos calamos ante as injustiças?
Por que aceitamos os desmandos e abuso de poder?
Por que nos resignamos a viver fechados e solitários e tratamos o outro com frieza e indiferença?
Por que ignoramos a positividade da sociabilidade?
Porque abrimos mão de nossa liberdade e nos sujeitamos ao tirano?

Por que nos identificamos e até acreditamos nas tagarelices televisivas?

Por que tanto medo?
Por que? por que?
Pensem nisso.

(Inspirado no filme: “Olhos azuis” de Jane Elliott)

 

M. Barreto

Poema Obsceno

Poema Obsceno

“Façam a festa
Cantem. Dancem
que eu faço o poema duro.

O poema murro
sujo
como a miséria brasileira.

Não se detenham:
Façam a festa.

Bethania, Martinho,
Clementina.

Estação Primeira. Mangueira. Salgueiro
gente de Vila Isabel e Madureira.

Todos,
façam
a festa

enquanto eu soco este pilão
este surdo
poema

que não toca no rádio
que o povo não cantará
(mas que nasce dele)

Não se prestará a análises estruturalistas.
Não entrará nas antologias oficiais.

OBSCENO

como o salário de um trabalhador aposentado.

O poema
terá o destino dos que habitam o lado escuro do país
e espreitam”.

O amor que era pra você

 

Ferreira Gullar

Soltos, com pó!

Soltos, como pó!

Como operário eu era gente, era alguém.
Não vivia ao vento
Já não era só eu, estava feliz.
Tinha raízes, não era pó.
Estava na fabrica, de macacão, crachá e com esperanças no peito.

Mas a crise… a reestruturação… os setores que fecharam,
as funções que desaparecem, os colegas demitidos.
Outras terras, nossa sina,
novas lágrimas, outras esquinas.
Tempos de desagregação e desatinos.

No recomeçar da empresa, nossos sonhos incompreendidos.
E dia após dia, a produção foi comendo nossas vidas.
As máquinas, moendo nossos sonhos.
A competição, transformando-nos em inimigos.

No silencio competitivo, somos humilhados, desqualificados.
No recomeçar da vida, a radio peão anuncia que um adoeceu,
o outro morreu e mais um, desapareceu.

Meu peito, de tanto sofrimento é um laço, um nó.
Estamos perdidos, lançados ao vento, num redemoinho de areia.
Somos muitos, cada vez mais, sem raízes. Soltos. Como pó.

 

Julio Tavares

O Tempo Cura

O TEMPO CURA

O tempo a tudo cura.
Essa frase tão ouvida,
Quando algo nos machuca,

Fica tão perdida,
Fica tão vazia.

Nem sempre o tempo cura,
A ferida profunda,
Nem faz apagar,
A lembrança tão viva.

Mas o tempo muito ajuda,
Quanto mais ele se vai,
Menos dói a ferida…
Menos dói a saudade.

É dar tempo ao tempo,
É saber com paciência esperar,
E firme acreditar que ele possa…
De tudo nos curar.

 

Cleide Yamamoto